terça-feira, abril 05, 2016

TESOURO AZUL





Levava às costas a vida inteira e nos olhos o pavor do mundo. Todo o pavor que os seus poucos anos comportavam. Nos pés uns sapatos esburacados e rotos, esfrangalhados de todos os sonhos de menina. E ela adorava aqueles sapatos! Como tinha ficado feliz quando a mãe lhos dera! Parecia uma princesa com eles… Os seus cabelos finos e escuros em doces ondas sobre os ombros e os pezitos delicados calçados com aqueles tesouros azuis com um lacinho do mesmo tom e a tira com fivela que prendia ao tornozelo magro escondido sob as meias quentes que a resguardavam do frio do Outono adiantado.

Tinham passados apenas uns 20 dias e os seus tesouros azuis eram agora uns destroços como os seus desejos e sonhos de criança. Agora ia empurrada pelo vento que açoitava duramente os corpos dobrados sobre si mesmos para se protegerem das bátegas de chuva gelada e das vergastadas da ventania. Ia sem saber para onde, nem muito bem porquê. Ia apenas, na horda de adultos e crianças que tropeçavam na lama e nas pedras que o caminho da guerra lhes tinha dado. Entorpecida e anestesiada nada importava, só caminhar, andar em frente. Já não sentia a falta do colo do pai que a carregara durante algum tempo e que perdera numa das muitas bermas que calcorreara, nem tão pouco o calor do corpo da mãe nas noites gélidas e imensas, porque também ela ficara algures por uma das inúmeras estradas que haviam palmilhado. Ou do irmão um ano mais velho que ela e que em dada altura lhe largara a mão também ele se perdendo no meio daqueles corpos angustiados, amedrontados, suados e esgotados mas que se obstinavam a prosseguir nem que fosse de rastos até tocarem o tal almejado “mundo novo”. A “nova esperança para além das fronteiras”, a “nova vida sem guerra nem fome”. Para ela eram palavras. Não tinha ainda a noção do que queriam dizer, os seus 7 anos tinham crescido abruptamente em semanas, mas… Continuava a ser uma menina que queria brincar com as suas amigas, as bonecas, e a sua bicicleta novinha em folha que um muro rebentara após o detonar de uma bomba. Pelo olhar embotado de medo, desespero e desesperança passavam ainda as lembranças de tempos felizes, de risos e de dias calmos. Mas mesmo esses laivos de normalidade iam aos poucos sendo sugados pela dureza do caminho que trilhava, sozinha. Mas no meio da multidão que com ela fugia, se empurrava e digladiava para encontrar um lugar mais abrigado para passar algumas horas de um descanso que era apenas um breve pestanejar. O cansaço, a fome, o frio e a sede iam reduzindo o rebanho humano que se lançara pelas montanhas e pelas planícies do país a ferro e fogo. Só precisavam atingir a fronteira, fosse lá isso o que fosse. Ela só queria sentar-se e descansar o corpo esgotado de dias e dias sem tréguas. Havia adultos que por vezes se juntavam a ela e lhe davam algo para comer ou beber. Ela era mais uma entre as inúmeras crianças do grupo que já tinham perdido os pais e os familiares na caminhada. Por isso tentavam junta-la ao grupinho infantil para que não se perdesse. Eles eram a esperança do povo. Eles tinham que sobreviver, fosse como fosse. Eram o futuro!
Finalmente a fronteira! E mais não sei quantos dias para poder passar. O seu grupo de meninos e meninas passou inteiro, todo junto! Como se fosse um corpo só. Empurrando-se e oscilando como uma aranha pequena numa teia enorme. A teia da vida que os enredou e lhes roubou os sonhos. Que lhes pôs cores negras e sem luz nos olhos infantis. Que lhes pôs o medo na alma e a tristeza no coração, que lhes vestiu os corpos franzinos de farrapos e amargura. Que lhes pôs nos pés a dor e a solidão. Passaram todos sem olhar para trás, sem saberem quantos adultos haviam passado como eles. Sem saberem o que ia suceder agora que entravam na “nova esperança”, que entravam num mundo a que tinham ouvido chamar “Europa”. O que iriam fazer, para onde iam ser encaminhados, o que lhes estava reservado. Pelo menos tinham conseguido chegar e sentiam-se orgulhosos dos seus pés rasgados e rostos sujos e emagrecidos. Sentiam-se alegres porque o sonho que os pais lhes tinham posto nas cabeças estava, ao que parecia, cumprido. Estavam a salvo da guerra, das bombas a rebentarem nas ruas a cada passo, das casas destruídas e dos corpos mortos pelas estradas das cidades. Do cheiro a doença e destruição, a morte, que se colava à pele e aos cabelos. Sim eles tinham chegado, representasse isso o que quer que fosse.


…Entrara em casa a medo. Ali tudo era silêncio e luz. Um sol quente e dourado entrava pela janela e inundava a caminha com uma colcha alegre feita de tecidos coloridos e acolchoada. Devia ser quentinha e aconchegante! Mas ela já não sabia o que isso era. Ali, no meio do quarto ouvindo a voz meiga e baixa da senhora que a acolhera, agarrava ansiosa e apavorada a sua mochila suja e meia desfeita e baixava o seu rostinho macerado olhando para os seus tesouros azuis que ainda lhe enfeitavam os pés gelados e roxos. Também eles haviam sido uns heróis, tinham chegado com ela. Um dia, quem sabe, não teria uns sapatos novos de princesa, desta vez num mundo de paz, amor e harmonia….

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