terça-feira, janeiro 30, 2007

OLHOS DE AVELÃ


À música do cd juntavam-se os soluços mansos, e as lágrimas mal contidas. Os cabelos anelados e longos descaem sobre o rosto contrito deixando-o semi escondido.
O grande golden-retriver enroscado aos seus pés levanta a dourada cabeça inquiridor ao ouvir o entrecortado soluçar da dona, que enterra os dedos dos pés nus, no seu macio pelo. Lá fora a noite está fria e límpida, como as belas noites de Inverno em que o vento assobia nas janelas emprestando um ar mais tristonho ao ambiente de meia penumbra da sala, somente quebrado pela beleza rubra do fogo que crepita, alegremente, na espaçosa lareira.
Matilde, levanta a cabeça, olha em volta, como se regressasse de um sonho qualquer, e desse consigo na sala acolhedora por suas mãos decorada havia quase 5 anos. Os olhos cor de avelã que ele tanto amava continuavam repletos de sentidas lágrimas. Porquê? Porque fora a vida tão cruel com eles?
No verão de há 4 anos havia feito um trabalho de prospecção subaquática juntos, o namoro e o encantamento dai surgira, com interesses comuns, ambos jovens e atléticos, óptimos mergulhadores, belíssimos profissionais, e amantes da natureza, poucas coisas os separavam. Matilde não gostava de conduzir e João era louco pelo volante e pela velocidade. Muitas vezes a rapariga lhe dissera que não gostava de viajar aquela velocidade alucinante porque nem desfrutava da paisagem e só servia para ir num estado nervoso imenso e a maior parte das vezes chegar ao destino agoniada e cansadíssima. Mas ele ria-se, soltava o volante e enlaçava-a com força dizendo que era uma tonta adorável, tentando sempre roubar-lhe um beijo de fugida. Ela encolhia-se com um gritinho de susto ralhando por sentir o carro a alta velocidade apenas conduzido com uma mão, ainda que hábil e segura.
Nos primeiros tempos o peso da responsabilidade do trabalho, roubava-lhes horas de sono, e sujeitava-os a canseiras mil. Num noite em que, depois de 4 horas de mergulho, voltaram a terra exaustos e sem forças para pegarem nos haveres e no carro e irem para o hotel onde estavam alojados, decidiram render-se aos encantos da escura e estrelada noite de verão e pela praia, onde agora se elevava a térrea casinha de madeira, pernoitaram. João rapidamente fez uma fogueira e o peixe também não constituía problema de maior, por isso ao som do marulhar manso das águas, cobertos pelo manto aveludado e ponteado de luz, se esticaram perto do lume conversando sobre o trabalho, os sonhos, os desejos, a vida. Matilde aos poucos ia sucumbindo ao cansaço e os olhos começaram a fechar-se involuntariamente. João, vai para o seu lado e deitando-se de costa oferece-lhe a barriga como almofada, ao que a rapariga não se faz rogada e naquela posição adormece. O raiar do dia vem acorda-los, moídos, mas satisfeitos, João passa-lhe a mão docemente pelos cabelos e vai desenhando o contorno do rosto, do queixo arredondado, o colo branco e firme. Matilde desperta mas mantém-se quieta e expectante, a mão quente de João continua a insinuar-se para baixo, os seios intumescidos, o ventre liso e semi ofegante, a púbis que de manso eleva virando-se para ele. Por seu turno a mão fina e esbelta da rapariga desliza branda pela pele arrepiado do corpo dele, detendo-se no mesmo local onde a mão ficara abandonada e sequiosa daquela gruta secreta que se adivinhava plena de segredos e sedução.
E na manhã rubra se dão uma e outra e outra vez, saciando-se do corpo, da ternura e da partilha do outro. Começara um ciclo de vida a dois que deveria ter um desfecho trágico quase 5 anos depois.
O trabalho ainda durou mais uns meses mas a paixão que os unia era inesgotável, desdobravam-se em actividades, viviam ao sol e à lua, à chuva e ao vento, percorriam quilómetros e quilómetros, descobriam um mundo à sua imagem, à imagem de um amor intenso e belo que nada poderia destruir.
Mandaram construir a casinha de madeira na praia dos seus desvelos, e lá viviam com o enorme goldy que ela lhe oferecera de presente de aniversário. O manso cão acompanhava-os para tudo o que era sitio, e ambos tinha uma amizade sem fim ao animal.
Havia 6 meses, João recebera um convite para ir trabalhar com um arqueólogo de fama. Era um hábil fotógrafo subaquático e habituado a imensa horas de imersão seria um aliado perfeito. Matilde ao princípio ressentiu-se por não ter sido ela a escolhida já que o seu curso era história na vertente de arqueologia, mas acabou por se deliciar com a catalogação dos artefactos descobertos.
Todos os dias deslocavam-se quase 200km para o local dos mergulhos e da estância, e todos os dias Matilde ia encolhida no seu canto, calada para não retirar a João o prazer da condução. Um belo dia, em que o mergulho se prolongou por mais horas, as garrafas tiveram que ser substituídas, e como os mergulhadores de serviço tinham as suas não sobrando nenhuma, João decide deixar Matilde no seu lugar e ir a casa buscar as suas próprias garrafas. Fatídica decisão a sua.
Mete-se à estrada com o rádio ligado no seu posto favorito e de pé sempre em baixo vai à “sua” velocidade pela estrada marginal sem trânsito, como era habito. Ao fazer uma curva, já com a vivenda à vista, salta um cão para a estrada que o obriga a guinar o carro de tal forma que, desgovernado acaba por saltar o talude e vir despenhar-se no fundo da falésia de rochedos aguçados. As horas passam, Matilde vem do seu trabalho esperando encontra-lo sorridente e de cabelo revolto, com as suas garrafas, sentado na areia a vê-la sair, esbelta e a escorrer das águas. Olha em volta e vê o areal deserto, embrulha-se na toalha e corre para o estaleiro onde se acumulam as peças e os apetrechos. Para encontrar um bilhete um bilhete curto do seu “patrão”; - Matilde, vá ter ao hospital, as noticias não são boas”.
Desvairada, e com o coração em sobressalto mete-se no jipe e voa para o hospital.
Será uma mulher destroçada que fará o reconhecimento do corpo quase irreconhecível do companheiro, e que voltará desfeita para a sua cabana da praia, tentar compor o que restou da sua vida….
Seis meses já haviam passado, o arqueólogo não a deixara mais e com ele trabalhava agora com afinco, como forma de tentar calar o desgosto imenso que a inundava. Durante o dia a mente e o físico trabalhavam em uníssono, mas as noites eram o seu maior pesadelo. Nessa noite Henrique, assim se chama, havia ousado pela primeira vez tocar-lhe, enlaça-la com meiguice, e recebera como prémio, um corpo que lhe tremia nos braços, mas longe de estar sereno. Sem a querer forçar, porque só o tempo cura a dor, deixara-a com um beijo doce nos lábios dizendo-lhe que se precisa-se ele viria a qualquer hora do dia ou da noite. Era sobre estas palavras que matutava, João estava morto, fora uma paixão bela e muito sua, mas a solidão das noites era um suplício duro de aguentar.
Levantou-se descalça, pegou no telemóvel e marcou o número, após breves instantes ouviu do outro lado;
“Só tens que me abrir a porta.”

8 comentários:

JM disse...

Por vezes é mesmo isso o mais difícil, voltar a abrir a porta. Gostei muito deste conto. Era óptimo que tivesse uma continuação ;)
Bjnhs

igara disse...

Luar, nem tenho palavras. Depois do que li, concordo com o Vlad, quando diz que mais dificil mesmo é voltar a abrir a porta de forma a nos permitir uma nova vida.

Gosto mesmo de te ler...mas tenho tido tão pouco tempo...espero ainda voltar hoje para ler tudo o que ainda não consegui ler. Beijos beijos e mais beijos e abracinhos apertadinhos :)

Ana Luar disse...

Nem tu sonhas como este conto é real em mim... Nem sequer imaginavas como irias abrir feridas quase cicatrizadas nas memórias da minha dor.
Eu conheço bem a dor de se perder quem se ama... quem é parte de nós.
Sei o que custa chegar a casa e precisar do tal sorriso que sempre ali esteve à nossa espera... oh como eu sei.
Mas sei tb que o tempo amaina a dor... e permite que outros braços nos enlacem... e outros sorrisos nos esperem.

Mas nos recantos da memória... "aquele sorriso" estárá sempre lá.

Beijo eterno meu luar perdido no tempo dos sentimentos.

Juℓi Ribeiro disse...

Lindo conto!
Parabéns!

"A porta do coração,
só pode ser aberta
pelo lado de dentro..."

Tudo passa o que é bom
e o que é ruim também.
Por isso devemos aproveitar
todos os nossos bons momentos
e abrir as portas
do nosso coração.

Beijo.*Juli*

Anónimo disse...

Excelente conto, extraordináriamente bem escrito. è uma história triste,( a perda), mas simultaneamente uma história linda, ( o amor). É também uma história de esperança. O passado deve sempre ser lembrado, mas o futuro está já ali, e tem que ser vivido. Parabéns querida amiga.

Juℓi Ribeiro disse...

Reli e me encantei novamente!
A saudade me fez retornar...
Um abraço carinhoso.*Juli*

JM disse...

Espero que estejas bem... já faz falta ler novas palavras tuas ;)
bjnh

Juℓi Ribeiro disse...

Luar:
Seus amigos
estão com saudades.

Passei para te desejar:
Ŧєlίz 卫άѕcσα!

Cσєlђίฑђσ đα 卫άѕcσα,
σ qυє тrαzєѕ ρrα мίм?

"Єυ тrαgσ єм мєυѕ αcђαđσѕ
є ρєrđίđσѕ
σ ѕσrrίѕσ ρυrσ đα crίαฑçα,
σ gєѕтσ cαlσrσѕσ
đσ αмίgσ ѕίฑcєrσ,
α clαrєzα đσѕ ѕєฑтίмєฑтσѕ
єฑтrє αѕ ρєѕѕσαѕ...
Qυє αѕ ρєѕѕσαѕ
ѕє єฑcσฑтrєм ฑσ αмσr
є ฑα fέ, qυє ѕє rєѕρєίтєм
ฑãσ ѕó ฑα 卫άѕcσα
мαѕ α cαđα đία."

Beijo.*Juli*

O TEMPO PERDIDO NÃO SE RECUPERA

As palavras lançadas não voltam atrás, o tempo perdido já não tem retorno e a vida esvai-se, no silêncio voraz. Fica o caminho, diluído, sem...