segunda-feira, julho 16, 2007

UM LENÇO BORDADO

As cigarras cantavam nas sombras escaldantes do pomar. O bafo quente do estio inundava terras, homens e gado e a dolência da tarde soalheira embalava os sonhos da idosa senhora que, encostada no tronco nodoso da nogueira, escabeceava docemente.
A alva cabeça pendia sobre o peito vestido de negro, cor que não tirava havia anos, e a face rosada como de um pêssego maduro, exibia a marca de muitas fadigas e desgostos nas mil rugas macias que a povoavam. As mãos calejadas e deformadas permaneciam abandonadas no colo como que a pedir p
erdão pela inactividade e de quando em vez, agitavam-se em espasmos frenéticos e curtos, para logo depois se aquietarem no regaço cansado. Os olhos, agora fechados, eram de um negro profundo e ainda vivo e sagaz e a chispa de marotice bem lá no fundo, sobressaía em dias de boa disposição. O varapau que a auxiliava também descansava das fadigas do dia a seu lado, tempos houvera em que o manejava tão bem como qualquer homem e várias vezes se defendera com ele…Ai se o seu cajado falasse!!! As coisas que tinha feito, as que tinha assistido, as que vira quase acontecer…Mas sempre estivera ao serviço daquelas mãos ásperas e rudes, mas também carinhosas e doces.
D. Genoveva era agora uma bisavó velhinha e meia distante, mas os seus netos e bisnetos não dispensavam as férias no casarão imenso, nem as sopas da anciã, nem as roupas ásperas das camas ou a alvorada do galo que lhes fazia sentir o novo dia. O cheiro do leite acabado de mugir, e a estaladiça broa com a manteiga gostosa como só ali se comia, para regalo de todos.
Naquela tarde resolvera regressar ao seu poiso favorito, mesmo com a casa cheia de risos e brincadeiras das crianças, que lhe tomavam todo o tempo, e com a lida da casa para fazer, a empregada para gerir e comandar, sim porque D. Genoveva, ainda tinha o pulso de outrora, sempre que a isso a obrigavam as vicissitudes da vida, fora dona e senhora de si mesma desde muito jovem, a viuvez visitara-a cinco anos após o casamento e com os filhos pequenos, as terras, os pais e os trabalhadores, a sua visão da vida, dos negócios e da gerência do que estavam a construir fez dela uma mulher madura, recta, senhora de si e justa, reservada e algo dura. Mas sempre que a sua cabeça voava para um ponto distante no tempo, esquecia tudo, netos, filhos, genros e noras, animais, trabalhos e empregados, terras e tudo o mais que a rodeava, nesses momentos, alheava-se de tudo ao seu redor, e com o seu andar já cambaleante, e os seus olhos duramente castigados por muitos anos de maus tratos e poucos cuidados, lá ia a figura curvadinha de negras roupas e alvas cãs, no passo miudinho e arrastado sentar-se no banco que mãos jovens e vigorosas haviam talhado muitos e muitos anos antes, ao redor da sua nogueira. Uma vez lá chegada, sentava-se, desdobrava o avental tão imaculado como os seus cabelos e acariciava docemente um pequeno pacote, já com o papel debotado pelo tempo, desmanchava o laço que fora rubro como as papoilas que a seus pés baloiçavam as corolas molemente ao vento quente da tarde, e deixava que as eternas lágrimas sobre o conteúdo caíssem como pérolas perdidas na imensidão do espaço, na saudade sem fim. Jamais perdoara à vida a morte do marido, tão jovem, tão alegre, tão apaixonado e sempre tão empreendedor. Os anos tinham passado, os filhos crescido e abandonado o solo pátrio, para cada verão regressarem ao ninho materno, depois os netos haviam seguido as mesmas pisadas e eram agora os bisnetos que a rodeavam e lhe davam alegria e também aguçavam a dor da ausência que nunca fora capaz de superar. O marido não conhecera a filha mais nova, falecera antes do parto e, calando a mágoa profunda, D. Genoveva, fizera singrar a vida de todos eles, lutando, trabalhando como um lavrador ao lado dos seus tarefeiros, do pessoal que a ajudava a manter os terrenos produtivos, e as vendas regulares nos mercados das redondezas. Mais tarde fora a invasão das grandes superfícies e mesmo assim ela acompanhara a evolução e continuara a produzir e abastecer algumas dessas áreas, ninguém lhe conhecia um gesto de desanimo, uma rendição às agruras da vida, fora uma lutadora nata, e guardara sempre as suas feridas mais profundas nas entranhas, no mais profundo de si mesma. Mas quantas vezes o seu coração contrito lhe dissera; Basta! Não posso mais! Nesses momentos, ia ao seu quarto e trazia o pacote que agora jazia no colo adormecido, afastava-se para a nogueira, companheira de namoro, beijos e carícias, de tardes de amor e desvelos com as crianças, e também de tantas lágrimas, de tantos suspiros dolorosos e infinitamente tristes e perdidos e deixava correr o pranto insano e a dor incessante que em seu peito habitava e a vergava e amarfanhava, nessas alturas Genoveva era uma criança perdida na floresta negra dos tormentos, da solidão, do desespero e da dor, abandonava-se à fúria da tristeza que a devastava sem dó nem piedade. Os seus olhos, vermelhos, inchados e de um negro tenebroso de dor, desfaziam-se me catadupas de orvalho sentido sobre o pobre lenço bordado com o monograma que as suas mãos de menina haviam bordado a linho branco e ponto cheio, e que Raul havia usado no dia do casamento, e apertara vigorosamente nas mãos na hora da morte, como que querendo agarrar-se ao amor da sua vida e com ele permanecer. Para ela, aquele pedaço de trapo amarelecido pelo tempo eram as festas, as carícias, os beijos que o tempo lhe roubara, era Raul que ali permanecia, vigoroso, sorridente, meigo e doce.
Aquela tarde, o riso cristalino dos bisnetos, em especial da pequena Maria, lembrara-lhe mais duramente o marido, a pequenita era a viva imagem do bisavô, viva, irrequieta, meiga, extremamente alegre mas de uma doçura extrema. E ali estava de novo nos braços do seu amor único, o braço forte de Raul enlaçava-a de novo, o seu rosto áspero do final do dia, colava-se ao seu, envelhecido mas rosado, os beijos que sempre lhe depositava nos olhos, quando a apanhava com eles semicerrados. De novo o calor do corpo junto ao seu! Ao fim ao cabo ela sempre soubera; Um dia Raul viria busca-la, um amor como o seu não podia ficar incompleto. Ele prometera, e hoje, na tarde quente do verão que ambos amavam, ele cumprira a promessa – Viera busca-la.
Os últimos raios de sol, vieram de manso beijar o rosto sossegado e calmo da anciã que nas mãos apertava o lenço bordado com o R, e dos seus olhos agora para sempre fechados duas gotas de orvalho pendiam, quais pérolas intocadas e perfeitíssimas.

2 comentários:

Phantom of the Opera disse...

Estou sem palavras, maravilhoso conto.
Adorei a coincidência do nome dele, diz-me muito... um dia talvez te conte.
Na parte final as lágrimas escorreram pela face ao encontro das tuas palavras...

:)

Estou do outro lado da Lua à espera desses "raios brandos da lua"

Beijo Nocturno

Ana Luar disse...

Ler-te é entrar num mundo onde a magia dos sentimentos se faz sentir com a força de um milhão de estrelas. Tudo em ti é encanto minha querida... Tudo o que escreves é ternura... Tudo em que te colocas é especial... pk lá estás tu... Um Luar perdido por dentro de mim.


Deixo um rasto de beijos ternos... beijos lunares minha amiga.

O TEMPO PERDIDO NÃO SE RECUPERA

As palavras lançadas não voltam atrás, o tempo perdido já não tem retorno e a vida esvai-se, no silêncio voraz. Fica o caminho, diluído, sem...