quinta-feira, setembro 14, 2006

PEQUENA SEREIA


O sol batia-lhe em cheio no rosto obrigando-a a franzir-se e semicerrar os olhos apesar dos óculos escuros. Baixou o olhar sobre a praia onde algumas pessoas se aqueciam e tostavam alheias à figura ainda esbelta que projectava a sua sombra sobre a areia escura da pequena enseada.Quantas memórias! Quantas lágrimas! Quantos anos…Ali estava de novo, de vestido branco de linho, uma grinalda de flores nos longos cabelos de sereia e um sorriso de menina nos lábios, a seu lado uma figura masculina, igualmente jovem e sonhadora enlaçava-a ternamente pela cintura. Olhavam o mar, calmo e azul, profundamente azul, e os negros e eriçados rochedos, dedos de lava endurecidos pelas águas.Os cabelos acobreados baloiçavam docemente na leve aragem fazendo cócegas no rosto, que rindo, lhe mordiscava o pescoço em ar de quem se vinga de tão ternas vergastadas. Os pés de ambos, nus, enterrados na areia preta e quente seriam doravante uma marca constante, e nesse preciso momento a jura de amor que haviam feito perante o altar, renovavam frente ás águas que a ambos enfeitiçavam e viriam a ser o seu segundo lar.Ambos adoravam o mergulho em profundidade, ambos Biólogos de profissão, ela mais dedicada à Biologia marinha ele à Biologia em geral, tinham-se conhecido no continente na faculdade e o amor crescera desde então. Já exerciam e tinham um sonho e um projecto em comum; Regressarem à sua ilha natal e nela desenvolverem o estudo, o reconhecimento e preservação das espécies nativas.Casa havia, quer dos pais dele que haviam falecido anos antes, quer dela, que comprara uma vivenda pequena e encantadora sobre uma falésia com acesso, íngreme e difícil, mas acesso mesmo assim, a uma minúscula baía de águas calmas onde por norma iniciava os seus mergulhos e onde fizera o seu “curso” de mergulho com o pai e o tio, anos antes. Aliás a baía era quase exclusivamente deles, e muitos dos apetrechos ficavam na loca de lava bem a salvo das marés. Com as ajudas estatais para o seu projecto tinham voltado e metido mãos à obra, mas antes tinham decidido dar o nó e fazer de dois um só. Tinham casado nessa manhã e ali estavam numa jura muda perante o extenso oceano – Preservar, catalogar e descobrir, estudar e dar a conhecer a fauna e flora das ilhas que tanto amavam. O mar calmo recebia, como beijos, os murmúrios daquelas almas apaixonadas e quem tivesse ouvidos e alma de poeta, poderia perceber a resposta das águas desfeitas em alva espuma, uma resposta de comunhão e aceitação entre homem e natureza, que nos ilhéus é mais forte e mais presente.Rodaram os anos, as estações, os desgostos e as alegrias, vieram dois filhos, e no meio, centro e união entre ambos, o mergulho, o êxtase perante essas águas de um cobalto que jamais alguém igualou, a loucura perante a miríade de peixes, crustáceos, moluscos e plantas que sob as escuras águas se agitam. Horas de paixão, horas de entrega quase física, horas de estudo, de recolha e de observação, milhares de fotografias, e amostras devidamente identificadas e catalogadas. Uma vida dedicada ao mar. E sempre o amor doce e calmo de quem não tem pressa e sabe que a vida corre mansa, as horas das refeições eram passadas em família, os garotos brincando desde muito novitoscom as redes e camaroeiros, com os apetrechos de mergulho e ensaiando os seus próprios dotes, treinando pulmões e corpo para mais tarde acompanharem os pais. Eram uma família feliz, que naquele pedacinho perdido entre céus e mar, fizera um hino a Deus, à natureza e ao amor.A cada ida ao continente, ambos tentavam ser breves e resolver tudo rapidamente, a confusão, o trânsito, as caras fechadas e indisposições constantes de quem por lá habita, não eram situações que lhes fossem agradáveis, por isso limitavam a duas deslocações anuais as obrigações para com a entidade que os apoiava e empregava. Tinham trazido os filhos apenas 4 vezes em toda a sua vida de casados, mas a decisão de os mandar estudar para Lisboa ou Porto já tinha sido ponderada e no caso do filho mais velho decorria já com êxito, já que o pequeno era aplicado e inteligente, a mais nova ainda luta em S. Miguel para se abalançar por o velho continente e voar para um curso que poucas ou nenhumas hipóteses tem nas Flores, mas que os pais por nada querem contrariar.Os anos já se fazem sentir em ambos, mas os mergulhos e explorações continuam, e um belo dia a eles junta-se um novo casal, enviado de Lisboa, para seguir e aumentar o espolio que já tem honras de livro editado, museu montado e videoteca, bem como visitas de estudo quer em terra quer no mar. Mas o oceano por vezes tem o seu feitio muito especial, e recebera as confidencias e promessas deles no 1º dia das suas vidas, recebia-os como filhos no seu seio, deixava-os à vontade, e eles no seu elemento mais querido aproveitavam e gozavam ao máximo esse comunhão consentida e querida.O coração pode ser traiçoeiro, e uma cara bonita, um corpo insinuante e tonificado, podem fazer os estragos de uma lavagem de tanques de petroleiro numa vida feliz e sem mácula. O destino que até ali fora benéfico e amigo para com a “pequena sereia”, como o marido lhe chamava tantas vezes, deu-lhe a provar o fel da traição. Mergulhador por excelência, a ele coube ensinar e vigiar os mergulhos dos continentais. Mas a voz da paixão falou mais alto e acabou por se envolver em escaldante romance com a jovem recém chegada. Voltou a fazer mergulho nocturno, coisa que haviam posto de parte 2 anos antes, por terem apanhado um susto com problemas respiratórios dele, voltou ao mergulho a mais de 30m que também lhe fora proibido, e à escalada para manter a forma. A tudo assistia com o coração em chaga e cada vez mais entregue ao trabalho para não sentir o ferrete da dor. Ele voltava sempre, meigo e comprometido, mas sem conseguir deixar o néctar daquele corpo jovem e pujante que tomara na praia ao luar imenso e claro, louco de paixão.A “pequena sereia” sucumbia a olhos vistos, definhava, mal dormia, ele apercebia-se e tentava por todos os meios emendar o seu erro, mas a jovem sempre se insinuava, e como alcoólico viciado, não resistia.Uma noite em que ambos os casais já se haviam recolhido, e a pequena casa se recortava na negra noite aveludada e morna de fim de verão, ouve-se abrir uma porta devagar; Por ela saem duas figuras, uma mais esguia e outra com as formas que os anos já começaram a marcar. Vão em silêncio, de corpos enlaçados e vultos ás costas, as suas silhuetas recortam-se nítidas contra o breu das águas onde os raios de lua doirada se espraiam mansamente. O ruído do mar é a única companhia destes dois que sorrateiramente para ele se dirigem. Mas o corpo fala mais alto, a carne é mais imperiosa, o desejo mais forte e a ambos já nada mais importa, a natureza repousa, nada os perturba. Deixam de lado os apetrechos de mergulho e entregam-se em arroubos de paixão louca, num frenesim intenso e desmedido sobre as negras areias, como que a relembrar outras explosões, as de um vulcão há muito extinto, mas que deixou as suas marcas indeléveis na ilha.Fatos vestidos, lanternas assestadas, e arpões nas mãos, mais um beijo antes do mergulho e ei-los nas águas, tenebrosas a tais horas em que todo o imaginário nos assola, nadam lado a lado, descuidados de tudo, do mundo, do coração despedaçado que deixaram em terra e que julgavam adormecido, mas que lentamente e desfeito desceu à praia e atrás deles mergulhou.Dirigem-se para uma gruta submarina, não muito fácil de fazer, mas que a experiência dele e a rapidez dela em conjunto resolveriam. Mas as páginas do livro da vida, ditariam um fim trágico àquele mergulho. Apanhados desprevenidos pela enchente, e lançados contra os rochedos afiados, nem a experiência nem a agilidade ou rapidez e robustez os salvariam, e enquanto se acariciavam felizes por terem atingido a gruta, seu sonho de havia meses, são esmagados furiosamente contra os aguçados picos que eriçam a entrada da gruta. Assustados e desnorteados, com uma das garrafas perfurada, as barbatanas dela foram arrancadas dos pés, e as costas dele em sangue, lutam por se manterem vivos, e sobem à tona da água, para encontrarem um mar furioso e encapelado, que os obriga a mergulhos curtos em que dividem a garrafa que sobrou. Mas o oceano não lhes perdoa a traição, o profanar de um santuário que fora pela sua “sereia” descoberto e tão cuidadosamente estudado e preservado, e fustiga tresloucado aqueles dois corpos que aos poucos vão perdendo as forças. Mas um vulto seguiu no seu encalço, e é com imenso esforço e determinação que tenta por todos os meios tira-los da corrente traiçoeira que tão bem conhece e sempre soube evitar, mas na qual tem que se arrojar para os salvar. A “sereia” ora choca de pés nos rochedos segurando o marido nos braços e a amante com o seu próprio corpo, ora se vira e nada de costas tentado puxa-los para o interior da gruta onde acabará por depositar o corpo moribundo do marido e o quase desfeito corpo da amante. O resto da noite passam-na em tormentos mil, ambas tentando mantê-lo vivo e tentando estancar o sangue que jorra abundantemente das feridas dela. No dia seguinte um barco leva-os para o hospital, onde um falece, a outra sobrevive e a outra apenas habita o corpo já que a alma morreu duas vezes….Quantos anos já passaram?...Deixou de os contar, voltava hoje, abria de novo a pequena casinha encarrapitada na falésia, os netos chegariam no dia seguinte, a vida continuara longe dali, no velho continente tão odiado, e que acabara por a receber. De “sereia” ficara-lhe o nome da casa, carcomido pelos anos, pela maresia e pelo vento, e a figura anda grácil de mulher bem madura, os cabelos já não eram longos e o tom cobre já se diluíra nas cãs que emprestavam um ar fino aquela mulher a quem a vida tanto marcara.Mas o azul-cobalto, profundo e imenso ainda a chamava no seu apelo mudo de mar, e as suas profundezas murmuravam aos seus ouvidos histórias mil secretamente contadas, que lhe abriam um ténue sorriso no rosto vincado de “sereia” perdida.

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O TEMPO PERDIDO NÃO SE RECUPERA

As palavras lançadas não voltam atrás, o tempo perdido já não tem retorno e a vida esvai-se, no silêncio voraz. Fica o caminho, diluído, sem...