quinta-feira, setembro 14, 2006

PÉROLA


Num banco rochoso das profundas e escuras águas do Oceano Indico, uma ostreira desenvolvia-se na mansidão da quietude azul, sem grandes variações térmicas nem correntes excessivamente fortes.Bem no centro do maciço submerso uma enormíssima tridacna entreabria a rugosa casca deixando que as nutrientes águas lhe depositassem na rosadas carnes, que afloravam os bordos sequiosos, o alimento precioso que a fazia crescer ao ritmo lento com que crescem todas as maravilhas e perfeições da natureza. A sua idade, já lhe perdera o conto, mas uns centos de anos teria, a julgar pelo tamanho das formas escuras e maciças, pelas tonalidades das suas carnaduras majestosas e pelo precioso tesouro que nas pregas macias do seu corpo alaranjado se escondia. Ao seu redor as ostras em cachos ou isoladamente iam-se desenvolvendo como que protegidas por aquela “mãe” imensa e branda.De quando em vez um mergulhador vinha visita-las para ver o seu estado de saúde e maturação, já que aquele banco, de produção elevada e excelente qualidade, servia para abastecer os mercados longínquos e estranhos, que sabiam apreciar o paladar exclusivo e único de uma ostra. Só um verdadeiro apreciador reconhecia os cambiantes do paladar daqueles delicados moluscos e sabia dar-lhes o mérito próprio. De cada vez que fazias as suas visitas ia sempre cumprimentar a imensa mole escura que, como por magia da paixão, delicadeza de sentimentos, ou simples função natural, lhe entreabria um pouco mais a casca e expunha os “lábios” carnudos aos beijos da água e festas das mãos calejadas do mergulhador, mas não se recolhia, antes se distendia deliciada com as carícias que de manso recebia.A mão experiente descia pela carne nacarada de tons estranhos ora alaranjados, ora rosa pálido, ora amarelados, marcada aqui e além por negros pontos, e massajando à passagem, o animal ia desdobrando as pregas internas até pôr semi a descoberto o tesouro inviolável que ele tão bem conhecia e guardava em estreita cumplicidade com ela; Uma pérola sem valor, cinzento-nacarado, imensa, esférica, perfeita na sua beleza e única.A tridacna, de válvula e concha completamente abertas repousava nesses momentos e deixava que a água fresca a invadisse sem barreiras, e que o seu tesouro fosse contemplado na extensão da sua preciosidade e belezas únicas e incomparáveis.Celebrado o ritual, homem e animal retomavam os seus rumos normais, ela fechava o seu corpo e ele emergia com a sua carga de ostras para o mundo.Nem um nem outro pensavam em separações ou mortes, como se o laço que os unia fosse eterno e imutável. Mas o facto é que o homem envelhece, e uma pérola é sinal de doença, mesmo numa tridacna descomunal e intemporal como ela. E assim, ali bem perto uma ostra ia crescendo lentamente já sustentada por um pé firme que calmamente se firmava na base rochosa, dali a muitos, muitos anos seria uma belíssima e imensa tridacna, mas por enquanto limitava-se a crescer sonhando, talvez, em ser como a sua bela e rugosa parceira, mansamente repousando ao seu lado.Um belo dia o mergulhador voltou, mas já não colheu ostras, foi direito à sua velha amiga, fazendo-lhe uma festa na casca e recebeu o costumeiro e alegre bafo de bolhas enquanto ela se abria. Muito a custo e visivelmente cansado empurrou a mão e expôs pela última vez a belíssima pérola cinzenta. Batendo com os pés no fundo com vigor, fez um rápido adeus à sua amiga que não mais verá. Pouco tempo depois um novo mergulhador se aproxima do banco para recolher o néctar submarino e nem se apercebe da forma escura e enorme que resiste ao tempo e ás mãos humanas que lhe acariciaram o corpo e se deleitaram com o tesouro que guarda.Fechada, triste mas persistente, desenvolve, cria camadas e vai polindo o seu incalculável conteúdo, até que um dia morrerá também e deixará o banco livre para o seu pequeno rebento que vai crescendo a seu lado.A pérola, essa pertencerá para sempre a Neptuno, será mais um dos seus tesouros eternos.

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