sexta-feira, outubro 05, 2007

AS SANDÁLIAS

As sandálias abandonadas sobre a varanda de madeira envernizada, o chapéu de abas largas repousa sobre a cadeira de baloiço que dança na breve aragem do final de tarde, e na areia um rasto de pé nus em direcção ao mar vestido dos tons róseos e purpúreos dos espectaculares entardeceres daquelas paragens. A figura esbelta e elegante recortando-se escura no vermelhão do
cair do dia, caminha de cabeça erguida desamarrando o nó da leve saia que lhe cobre as coxas e as pernas bem lançadas, que, como que arrancada por mão invisível, cai à beira da água.
O mar dir-se-ia que meigamente lhe molha o corpo esguio que nele mergulha com um arrepio de prazer. As ondas breves e frescas escondem por breves instantes a mulher que volta à tona de cabelos molhados e rosto sereno. As braçadas sincopadas e correctas levam-na para bem fora de pé em direcção ao sol que vai mergulhando nas águas cada vez mais escuras e frias. A noite vai descendo de manso e envolvendo tudo em seu redor com o manto negro aveludado e suave das estiagens., mas nada parece demove-la de se internar cada vez mais mar adentro, nem a noite, nem a temperatura do mar.
Na varanda uma ténue luz lembra um regresso ao aconchego, chama à razão, mas o seu apelo fica mudamente cristalizado na praia, onde só o som do marulhar brando se eleva. Pela janela aberta uma sombra move-se procurando em todas as dependências, as luzes vão ficando acesas à sua passagem e em breve a casinha é um farol que brilha na noite, chamando, chamando, mostrando um rumo, um caminho. Na varanda, a figura masculina olha atentamente o mar que esconde o seu segredo ciosamente, perscruta o negrume e lentamente vai descendo à praia caminhando em silêncio de cenho franzido e olhos postos no som que lá de baixo lhe chega aos ouvidos.

Na beira-mar a saia abandonada vai e vem no refluxo da maré, molhada e enrugada como a vida que entrara mar dentro havia algum tempo. Agarra no pedaço de tecido e despindo a camisola, tirando os sapatos, enrola-o na cintura e entra igualmente alucinado pelo mar frio. Mergulha, vem à tona, mergulha, volta ao de cimo das águas, mergulha, cada vez mais fundo, braçadas vigorosas de nadador há muito habituado à força da água em enchente, impulsionado por um desejo louco de voltar a prender aquele corpo frágil e dócil nos braços, de voltar a faze-la sua. Mergulha e força as braçadas para baixo, como que tentando ver através do negro véu liquido, cada vez mais fundo, cada vez mais longe, e numa vinda à tona pareceu-lhe ver um vulto um pouco mais à frente. Nada com força e com o coração a bater acelerado em direcção à mancha. Rápido! Rápido, cada vez mais rápido! As braçadas sucedem-se ritmadas. Certas, como remos que cortam a água à cadência de uma competição.
De repente embate num corpo inerte e gelado, que de costas flutua docemente na ondulação branda de largo. Os braços abertos, a pernas ligeiramente entreabertas, o corpo flácido, os cabelos colados ao rosto frio. Reboca-a o mais rápido que pode para terra, tentando que o seu próprio coração não lhe salte pela boca devido ao esforço hercúleo que tem vindo a desenvolver. Barco salvador rebocando uma prancha de surfista, assim chegam à terra firme. Completamente esgotado, abandona-se uns momentos sobre a areia cobrindo o corpo enregelado com o seu, puxa-a um pouco mais para cima para que o mar não os molhe mais. Recupera o fôlego e pegando nela ao colo encaminha-se a toda a pressa para a casa, que de longe parece um hino à alegria, ao calor, ao aconchego.

Farol na noite escura, a casa deserta mas atenta recebe-os no seu seio. No chão fica um rasto de água dos corpos ensopados, lança-a sobre o cadeirão e corre casa dentro para trazer toalhas e um cobertor. Ao olha-a desanima, os lábios carnudos estão violáceos, os olhos cerrados e negros, a cabeça pendente e sem vida, o cabelo colado ao rosto inanimado e descorado. Os braços moles, ficaram na posição torcida em que os deixara, as pernas e os pés estão roxos e o corpo horrivelmente frio, quase o fazem desistir. Quantas horas estivera dentro de água? Quantas horas estivera sem se mexer? Porquê? Porque a deixara vir embora assim?
Acende a lareira na noite morna de fim de verão, e esfrega o corpo, as extremidades, sem despregar os olhos daquele rosto que tanto ama e tanto magoara. Despe-lhe o fato de banho e o corpo nu que tantas vezes prendera no seu lembra-lhe dolorosamente as noites de entrega, o riso solto e doce quando lhe fazia cócegas, os beijos ávidos e meigos que trocavam, a maneira única como o olhava, a malandrice e gaiatice no rosto de cabelos soltos que fazia descer pelo seu peito deixando o suave rasto do perfume do champô. A lareira já crepita e pegando amorosamente nela vai deita-la sobre o cobertor bem perto das chamas tentando chama-la à vida. Aos poucos a cor arroxeada vai abandonando o corpo que retoma o seu tom marmóreo que o delicia, os pés, as mãos compridas e finas, o rosto devagar vão retomando a sua cor, e num arranque brutal a respiração retoma a normalidade. As contracções involuntárias começam, e ele aprecia em toda a sua beleza o corpo nu que ao calor das labaredas vai tornando à vida. Docemente deita-se sobre ela tentando acalmar os espasmos. De olhos ainda fechados, lentamente os braços envolvem-no, o corpo aninha-se contra o calor do seu, e ao seu ouvido num fio de voz que lhe parece vir do fundo da morte, a voz suave murmura-lhe;
Voltaste amor, voltaste.

2 comentários:

Phantom of the Opera disse...

Tinha saudades das tuas histórias, sempre tão envolventes.
Adoro ler a doçura que deixas nas palavras.

Deixo um beijo

Whispers disse...

Que bonito...
Muitas vezes e assim na vida, as pessoas nao dao valor ao que tem so depois de saberem que se perdeu e que se reconhece o valor do ser querido
Parabens, adorei amei a historia, devias escrever muito mais
te deixo mil beijos e que teu fim de semana seja maravilhoso
Es uma alma encantadora
Whispers

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