Provavelmente não irá saber o que a acordou, aliás como é normal; Se o calor da noite, se a trovoada longínqua mas persistente como um ronronar surdo, se a chuva miúda e certa se as saudades que lhe roem o peito. O certo é que mais uma vez acordou e ainda é noite fechada.
Descalça foi à janela, abriu-a de par em par e deixou que a brisa fresca da noite lhe percorresse o corpo coberto pela translucida camisa de noite que lhe disfarçava as formas femininas. A aragem morna e o silencio apenas cortado pelo trovão ao longe enchiam-na de uma paz magoada que não sabia descrever. Na sua mesa de cabeceira repousava o diário aberto e a caneta, as palavras que ensaiara escrever para extirpar a dor, para arrancar aquele espinho eternamente cravado no seu coração e que não cessava de fazê-lo sangrar, eram como conchas vazias rolando na espuma da maré. Nada!Nem uma única palavra traduzia a amálgama de sentimentos que a assolavam. A noite carregada de nuvens ameaçadoras tinha uma estranha luminosidade, a luz da lua brilhava pardacenta por trás da densa cabeleira de nuvens emprestando ao ar aquela fulguração esquisita, amarelada, acobreada e algo rosada que caía do céu como um manto. O silêncio era absoluto! Nem o restolhar das aves nos ninhos, nem o pio de algum mocho ou ave nocturna, nem as folhas pareciam mexer-se. Nada bulia, era como se o mundo se tivesse imobilizado naquele instante, cristalizado, transformado em pedra por alguma Circe desconhecida que rondasse as estradas desertas e os perdidos caminhos dos homens.
Debruçada na janela deixava-se embalar pela morna brisa que lhe deixava os cabelos em desalinho e a percorria como uma carícia doce e suave. Os olhos fechados e o coração longe...Muito longe...Em outras noites, noutros braços bem mais reais que os do vento, noutras carícias mais ternas que as de uma noite de verão onde a chuva quente lhe encharcava a delicada camisa colando-a à pele. E o sonho, a dor, a ausência, o desejo de ter o que jamais teria, o que jamais seria seu, inundavam-lhe a alma subindo aos poucos, apertando-a, estrangulando-a como uma cobra traiçoeira num abraço fatal. O espinho cravava-se mais um pouco no seu coração e a dor tornava-se mais forte, dos olhos teimosamente cerrados desciam pesadas gotas que se juntavam às lágrimas vindas do céu. A tristeza do alto era como um xaile que lhe dava abrigo, que a escondia no seu seio e lhe dava de certa forma conforto. Tal como ela a natureza chorava, tal como ela a natureza estava ferida, magoada, só. Aquele silencio que o ribombar ainda manso e distante do trovão cortava fazia o seu peito elevar-se num espasmo cadenciado que aos poucos ia aliviando a amargura que, de certo, fora a causa do seu despertar e de mais outra noite de insónia. As sua lágrimas sentidas e quentes caiam junto com a chuva morna nas pedras da calçada engrossando a bátega que caía agora com mais força deixando-a de cabelos ensopados e a camisa totalmente colada à pele. Parecia nada sentir, entregava à noite a sua dor, a sua imensa dor que jamais confessava, que jamais dizia a extensão, o tamanho, o rasgão profundo que na sua vida havia sido feito.
A trovoada estava agora bem mais próxima e um relâmpago forte e brilhante risca o céu pardacento fazendo-a abrir os olhos e desfrutar do espectáculo. O ar ficou impregnado daquele cheiro característico das descargas eléctricas em tempo de chuva e por momentos a sua atenção elevou-se para o Alto, para aquela demonstração de força da natureza, tomou como que consciência do tamanho ridículo da sua dor, da sua própria pequenez frente a uma força como aquela. A dor abrandou, deixou-se tocar. E dos seus lábios um breve murmúrio se elevou que a aragem morna e as gotas de chuva quente levaram até se perder; Obrigada, obrigada!