Era de novo o tempo das vindimas. Na encosta xistosa e fresca, os cachos plenos e maduros aguardavam as tesouras, as mãos hábeis, e as cantilenas de mais uma jorna. A folhagem tomava já os tons doirados do Outono e as manhãs, envoltas no seu xaile de neblina, eram o prenúncio de mais um tempo de silêncio e recolhimento após a azáfama da apanha das uvas.
Beatriz havia anos (muitos anos), não pisava solo pátrio, por opção e revolta, deixara o pai e o irmão, após a morte da mãe, encarregues das encostas produtivas da quinta que a vira nascer e que amava com um amor entranhado e duro, como duras eram as rochas que davam paladar e corpo aos maduros cachos. Era alta e esguia, robusta e decidida não negando a sua ascendência celta por parte de mãe, mas de olhar meigo e doce que do pai herdara e da avó paterna, D. Tomásia Ferreira, a quem se devia o nome porque eram conhecidos os vinhos da quinta.
Saíra ainda muito jovem, orgulhosa e magoada, imputando silenciosamente a morte prematura da mãe ao pai, a quem tornara a vida muito difícil pelo mutismo obstinado e revolta constante e declarada. D. Tomásia entendia a neta e tentava por todos os meios faze-la ver os factos reais, José Alberto, seu pai, debatia-se com dois filhos menores em idades perigosas e a gerência da quinta que sempre partilhara com Aby, sua esposa. Sem grande tempo para dar atenção às crianças deixava-as muito aos cuidados e atenção da avó que fazia de tudo para substituir de alguma forma a nora. Mas enquanto Jaime era dócil e cordato, Bia era uma revoltada que fazia gala em mostrar quer em casa quer na escola, quer com os empregados. Inteligente e viva, adorava o campo e a vida da quinta, aprendera com o pai a amar aquelas pedras, as cepas, os rigores do inverno e os ardores do verão, corria como uma gazela as encostas, saltitando como uma cabrita de escalão em escalão, podando daqui, colhendo os abrolhos de acolá. Fora uma criança alegre e bem disposta, mas a adolescência tinha tido o travo amargo da perca, e, se bem que os pais se amassem, Bia sentia a infelicidade da mãe por estar por longos períodos afastada das suas brumas e castelos, dos seus bem amados campos da Escócia natal. Aby era feliz no Douro, amava a terra, o trabalho nas vinhas, no qual se empenhava ao lado de José Alberto, amava o rio a seus pés e os filhos que por amor e desejo tinha posto no mundo. Mas era na Escócia que se tornava ela, quase etérea mas de uma vivacidade imensa. Ensinara as crianças a amar também aquele pedaço de chão que era o seu e em Bia tinha a resposta aos seu mais recônditos anseios, tal como ela a pequenita crescia e tornava-se outra quando nas férias ia passar três meses com os avós maternos.
Quando Aby partira Bia tinha quinze anos e Jaime doze. Durante cinco longos e duros anos em que a revolta e a dor cresceram sem que houvesse tempo ou espaço para falar com o pai, ela foi traçando o seu rumo e no dia que completou os vinte anos, foi ao escritório e deixou sobre a secretária uma frase curta, friamente; - “Parto amanhã para a Escócia, esqueça-se que tem uma filha!”. E assim partiu, na madrugada seguinte sem que alguém da casa tivesse dado pela sua saída. Muitas foram as diligências do pai e da avó juntos dos avós maternos para que a demovessem das suas teimosias, José Alberto fora vezes sem conta à Escócia falar com ela, mas nada a vergou. Nem a morte de D. Tomásia a trouxe ao país natal, chorou de longe a morte da avó querida, remoeu mais uma morte em silêncio, mas não veio. Estudara, formara-se, estivera noiva e acabara o noivado, gerira os bens da mãe e dos avós e dera um rumo a si mesma em terras de Sua Majestade, mas o Douro que a vira nascer, ardia-lhe no peito.
Olhava agora os socalcos bem amanhados como sempre, as douradas folhas e a neblina odorosa que lhe trazia à memória os seus passos e brincadeiras de menina. As carrinhas com o pessoal passaram por ela sem parar direitas ao fundo dos terrenos, mais atrás o carro negro com um vulto mais velho ao volante, reconheceria aquele perfil de olhos fechados, José Alberto, tisnado e mais forte, um pouco mais curvado e com rugas no rosto, passou por ela também, ao lado a figura alta e delgada do irmão, voltou-se de costas, não queria que a vissem já.
Caminhou ao longo do trajecto que a levava de novo a casa, calma, devagar silenciosamente, bebendo o ar matinal e o encanto que só naquelas terras sentia. Avistou o velho palacete cor-de-rosa e apercebeu-se que embora com obras recentes, também ele acusava o passar dos anos. Entrou no portão e, como sempre fizera, foi sentar-se no alpendre nos degraus gastos e puídos pelo uso e pelos anos. Um riso infantil veio acorda-la do seu sonho, do êxtase em que se mantinha olhando a paisagem que nunca esquecera, à sua frente um pequenito dos seus sete anitos, estacou e perguntou sem cerimónia; _ “O que faz a senhora aqui? Isto é propriedade privada, sabe?!” –
Sorrindo Bia, disse; - “Sei sim. E diz-me lá, quem és tu?” – A resposta foi pronta e ela quase se reviu no garoto: - “Eu sou o João Maria, e a senhora quem é e o que faz nos degraus do meu avô?” –
- “Eu…Eu sou a tua tia Beatriz, sou a filha do teu avô, e irmã do teu pai” – Respondeu suavemente à criança. Para seu espanto uma voz atrás de si disse-lhe; - “Sejas bem vinda Bia! Há quanto tempo…”
Levantou-se como se um cento de abelhas a tivessem picado, e virando-se de repente ficou frente a frente com um homem alto e entroncado, no vigor dos seu quarenta anos bem conservados e elegantes que a olhava com uma expressão de ternura e zanga, emprestando aos olhos esverdeados um ar travesso e doce. Emudecida, engasgada e ruborescida, Beatriz aguentou o embate daquele olhar e respondendo ao apelo mudo da mão estendida para ela, subiu os degraus pela mão de Raul, capataz da fazenda e filho da velha governanta, com ele penetrou na penumbra da casa e à lembrança regressaram as horas passadas no lar, o cheiro do pão acabado de cozer, o leite morno, as natas batidas pelas mãos da velha Aurora, o odor adocicado das flores campestres que pelas jarras e jarrões ainda se espalhavam pelas salas. Como num sonho atravessou os corredores, os salões, e a saleta privada onde sobre a mesa permaneciam imutáveis o sorriso da mãe preso na sua moldura e a sua primeira vindima bem como a de Jaime. Duas lágrimas correram pelos olhos negros aveludando-lhes a expressão, e a mão de Raul apertou a sua com ternura como que a fazer-lhe sentir que, tal como outrora, ele ainda ali estava à sua espera, atento e pronto.
Sem saber como encontrava-se agora frente a uma senhora que o tempo vergara, embranquecera mas não alterara as feições nem a beleza, apenas os olhos azuis como o céu olhavam agora o infinito. Aurora, prendia-lhe as mãos e percorria-lhe o rosto, dizendo entre lágrimas e sorrisos; - “A minha menina voltou! A minha menina voltou!”. E como antes, Beatriz escondeu no regaço gasto pelos anos o rosto onde afogou as lágrimas, as dores e a revolta de mais de vinte anos chorando como criança abandonada.
Duas mãos calejadas prenderam-na pelos ombros sacudidos pelos soluços e a voz quente e ainda forte do pai murmuraram-lhe ao ouvido; - “Sejas bem vinda Beatriz à casa, ao amor, à família e à tua terra. As uvas, o xisto, o vento e o rio aguardam as tuas mãos para mais uma vindima. Vens?”
Beatriz havia anos (muitos anos), não pisava solo pátrio, por opção e revolta, deixara o pai e o irmão, após a morte da mãe, encarregues das encostas produtivas da quinta que a vira nascer e que amava com um amor entranhado e duro, como duras eram as rochas que davam paladar e corpo aos maduros cachos. Era alta e esguia, robusta e decidida não negando a sua ascendência celta por parte de mãe, mas de olhar meigo e doce que do pai herdara e da avó paterna, D. Tomásia Ferreira, a quem se devia o nome porque eram conhecidos os vinhos da quinta.
Saíra ainda muito jovem, orgulhosa e magoada, imputando silenciosamente a morte prematura da mãe ao pai, a quem tornara a vida muito difícil pelo mutismo obstinado e revolta constante e declarada. D. Tomásia entendia a neta e tentava por todos os meios faze-la ver os factos reais, José Alberto, seu pai, debatia-se com dois filhos menores em idades perigosas e a gerência da quinta que sempre partilhara com Aby, sua esposa. Sem grande tempo para dar atenção às crianças deixava-as muito aos cuidados e atenção da avó que fazia de tudo para substituir de alguma forma a nora. Mas enquanto Jaime era dócil e cordato, Bia era uma revoltada que fazia gala em mostrar quer em casa quer na escola, quer com os empregados. Inteligente e viva, adorava o campo e a vida da quinta, aprendera com o pai a amar aquelas pedras, as cepas, os rigores do inverno e os ardores do verão, corria como uma gazela as encostas, saltitando como uma cabrita de escalão em escalão, podando daqui, colhendo os abrolhos de acolá. Fora uma criança alegre e bem disposta, mas a adolescência tinha tido o travo amargo da perca, e, se bem que os pais se amassem, Bia sentia a infelicidade da mãe por estar por longos períodos afastada das suas brumas e castelos, dos seus bem amados campos da Escócia natal. Aby era feliz no Douro, amava a terra, o trabalho nas vinhas, no qual se empenhava ao lado de José Alberto, amava o rio a seus pés e os filhos que por amor e desejo tinha posto no mundo. Mas era na Escócia que se tornava ela, quase etérea mas de uma vivacidade imensa. Ensinara as crianças a amar também aquele pedaço de chão que era o seu e em Bia tinha a resposta aos seu mais recônditos anseios, tal como ela a pequenita crescia e tornava-se outra quando nas férias ia passar três meses com os avós maternos.
Quando Aby partira Bia tinha quinze anos e Jaime doze. Durante cinco longos e duros anos em que a revolta e a dor cresceram sem que houvesse tempo ou espaço para falar com o pai, ela foi traçando o seu rumo e no dia que completou os vinte anos, foi ao escritório e deixou sobre a secretária uma frase curta, friamente; - “Parto amanhã para a Escócia, esqueça-se que tem uma filha!”. E assim partiu, na madrugada seguinte sem que alguém da casa tivesse dado pela sua saída. Muitas foram as diligências do pai e da avó juntos dos avós maternos para que a demovessem das suas teimosias, José Alberto fora vezes sem conta à Escócia falar com ela, mas nada a vergou. Nem a morte de D. Tomásia a trouxe ao país natal, chorou de longe a morte da avó querida, remoeu mais uma morte em silêncio, mas não veio. Estudara, formara-se, estivera noiva e acabara o noivado, gerira os bens da mãe e dos avós e dera um rumo a si mesma em terras de Sua Majestade, mas o Douro que a vira nascer, ardia-lhe no peito.
Olhava agora os socalcos bem amanhados como sempre, as douradas folhas e a neblina odorosa que lhe trazia à memória os seus passos e brincadeiras de menina. As carrinhas com o pessoal passaram por ela sem parar direitas ao fundo dos terrenos, mais atrás o carro negro com um vulto mais velho ao volante, reconheceria aquele perfil de olhos fechados, José Alberto, tisnado e mais forte, um pouco mais curvado e com rugas no rosto, passou por ela também, ao lado a figura alta e delgada do irmão, voltou-se de costas, não queria que a vissem já.
Caminhou ao longo do trajecto que a levava de novo a casa, calma, devagar silenciosamente, bebendo o ar matinal e o encanto que só naquelas terras sentia. Avistou o velho palacete cor-de-rosa e apercebeu-se que embora com obras recentes, também ele acusava o passar dos anos. Entrou no portão e, como sempre fizera, foi sentar-se no alpendre nos degraus gastos e puídos pelo uso e pelos anos. Um riso infantil veio acorda-la do seu sonho, do êxtase em que se mantinha olhando a paisagem que nunca esquecera, à sua frente um pequenito dos seus sete anitos, estacou e perguntou sem cerimónia; _ “O que faz a senhora aqui? Isto é propriedade privada, sabe?!” –
Sorrindo Bia, disse; - “Sei sim. E diz-me lá, quem és tu?” – A resposta foi pronta e ela quase se reviu no garoto: - “Eu sou o João Maria, e a senhora quem é e o que faz nos degraus do meu avô?” –
- “Eu…Eu sou a tua tia Beatriz, sou a filha do teu avô, e irmã do teu pai” – Respondeu suavemente à criança. Para seu espanto uma voz atrás de si disse-lhe; - “Sejas bem vinda Bia! Há quanto tempo…”
Levantou-se como se um cento de abelhas a tivessem picado, e virando-se de repente ficou frente a frente com um homem alto e entroncado, no vigor dos seu quarenta anos bem conservados e elegantes que a olhava com uma expressão de ternura e zanga, emprestando aos olhos esverdeados um ar travesso e doce. Emudecida, engasgada e ruborescida, Beatriz aguentou o embate daquele olhar e respondendo ao apelo mudo da mão estendida para ela, subiu os degraus pela mão de Raul, capataz da fazenda e filho da velha governanta, com ele penetrou na penumbra da casa e à lembrança regressaram as horas passadas no lar, o cheiro do pão acabado de cozer, o leite morno, as natas batidas pelas mãos da velha Aurora, o odor adocicado das flores campestres que pelas jarras e jarrões ainda se espalhavam pelas salas. Como num sonho atravessou os corredores, os salões, e a saleta privada onde sobre a mesa permaneciam imutáveis o sorriso da mãe preso na sua moldura e a sua primeira vindima bem como a de Jaime. Duas lágrimas correram pelos olhos negros aveludando-lhes a expressão, e a mão de Raul apertou a sua com ternura como que a fazer-lhe sentir que, tal como outrora, ele ainda ali estava à sua espera, atento e pronto.
Sem saber como encontrava-se agora frente a uma senhora que o tempo vergara, embranquecera mas não alterara as feições nem a beleza, apenas os olhos azuis como o céu olhavam agora o infinito. Aurora, prendia-lhe as mãos e percorria-lhe o rosto, dizendo entre lágrimas e sorrisos; - “A minha menina voltou! A minha menina voltou!”. E como antes, Beatriz escondeu no regaço gasto pelos anos o rosto onde afogou as lágrimas, as dores e a revolta de mais de vinte anos chorando como criança abandonada.
Duas mãos calejadas prenderam-na pelos ombros sacudidos pelos soluços e a voz quente e ainda forte do pai murmuraram-lhe ao ouvido; - “Sejas bem vinda Beatriz à casa, ao amor, à família e à tua terra. As uvas, o xisto, o vento e o rio aguardam as tuas mãos para mais uma vindima. Vens?”