sexta-feira, março 28, 2008

VINDIMAS

Era de novo o tempo das vindimas. Na encosta xistosa e fresca, os cachos plenos e maduros aguardavam as tesouras, as mãos hábeis, e as cantilenas de mais uma jorna. A folhagem tomava já os tons doirados do Outono e as manhãs, envoltas no seu xaile de neblina, eram o prenúncio de mais um tempo de silêncio e recolhimento após a azáfama da apanha das uvas.
Beatriz havia anos (muitos anos), não pisava solo pátrio, por opção e revolta, deixara o pai e o irmão, após a morte da mãe, encarregues das encostas produtivas da quinta que a vira nascer e que amava com um amor entranhado e duro, como duras eram as rochas que davam paladar e corpo aos maduros cachos. Era alta e esguia, robusta e decidida não negando a sua ascendência celta por parte de mãe, mas de olhar meigo e doce que do pai herdara e da avó paterna, D. Tomásia Ferreira, a quem se devia o nome porque eram conhecidos os vinhos da quinta.
Saíra ainda muito jovem, orgulhosa e magoada, imputando silenciosamente a morte prematura da mãe ao pai, a quem tornara a vida muito difícil pelo mutismo obstinado e revolta constante e declarada. D. Tomásia entendia a neta e tentava por todos os meios faze-la ver os factos reais, José Alberto, seu pai, debatia-se com dois filhos menores em idades perigosas e a gerência da quinta que sempre partilhara com Aby, sua esposa. Sem grande tempo para dar atenção às crianças deixava-as muito aos cuidados e atenção da avó que fazia de tudo para substituir de alguma forma a nora. Mas enquanto Jaime era dócil e cordato, Bia era uma revoltada que fazia gala em mostrar quer em casa quer na escola, quer com os empregados. Inteligente e viva, adorava o campo e a vida da quinta, aprendera com o pai a amar aquelas pedras, as cepas, os rigores do inverno e os ardores do verão, corria como uma gazela as encostas, saltitando como uma cabrita de escalão em escalão, podando daqui, colhendo os abrolhos de acolá. Fora uma criança alegre e bem disposta, mas a adolescência tinha tido o travo amargo da perca, e, se bem que os pais se amassem, Bia sentia a infelicidade da mãe por estar por longos períodos afastada das suas brumas e castelos, dos seus bem amados campos da Escócia natal. Aby era feliz no Douro, amava a terra, o trabalho nas vinhas, no qual se empenhava ao lado de José Alberto, amava o rio a seus pés e os filhos que por amor e desejo tinha posto no mundo. Mas era na Escócia que se tornava ela, quase etérea mas de uma vivacidade imensa. Ensinara as crianças a amar também aquele pedaço de chão que era o seu e em Bia tinha a resposta aos seu mais recônditos anseios, tal como ela a pequenita crescia e tornava-se outra quando nas férias ia passar três meses com os avós maternos.
Quando Aby partira Bia tinha quinze anos e Jaime doze. Durante cinco longos e duros anos em que a revolta e a dor cresceram sem que houvesse tempo ou espaço para falar com o pai, ela foi traçando o seu rumo e no dia que completou os vinte anos, foi ao escritório e deixou sobre a secretária uma frase curta, friamente; - “Parto amanhã para a Escócia, esqueça-se que tem uma filha!”. E assim partiu, na madrugada seguinte sem que alguém da casa tivesse dado pela sua saída. Muitas foram as diligências do pai e da avó juntos dos avós maternos para que a demovessem das suas teimosias, José Alberto fora vezes sem conta à Escócia falar com ela, mas nada a vergou. Nem a morte de D. Tomásia a trouxe ao país natal, chorou de longe a morte da avó querida, remoeu mais uma morte em silêncio, mas não veio. Estudara, formara-se, estivera noiva e acabara o noivado, gerira os bens da mãe e dos avós e dera um rumo a si mesma em terras de Sua Majestade, mas o Douro que a vira nascer, ardia-lhe no peito.
Olhava agora os socalcos bem amanhados como sempre, as douradas folhas e a neblina odorosa que lhe trazia à memória os seus passos e brincadeiras de menina. As carrinhas com o pessoal passaram por ela sem parar direitas ao fundo dos terrenos, mais atrás o carro negro com um vulto mais velho ao volante, reconheceria aquele perfil de olhos fechados, José Alberto, tisnado e mais forte, um pouco mais curvado e com rugas no rosto, passou por ela também, ao lado a figura alta e delgada do irmão, voltou-se de costas, não queria que a vissem já.
Caminhou ao longo do trajecto que a levava de novo a casa, calma, devagar silenciosamente, bebendo o ar matinal e o encanto que só naquelas terras sentia. Avistou o velho palacete cor-de-rosa e apercebeu-se que embora com obras recentes, também ele acusava o passar dos anos. Entrou no portão e, como sempre fizera, foi sentar-se no alpendre nos degraus gastos e puídos pelo uso e pelos anos. Um riso infantil veio acorda-la do seu sonho, do êxtase em que se mantinha olhando a paisagem que nunca esquecera, à sua frente um pequenito dos seus sete anitos, estacou e perguntou sem cerimónia; _ “O que faz a senhora aqui? Isto é propriedade privada, sabe?!” –
Sorrindo Bia, disse; - “Sei sim. E diz-me lá, quem és tu?” – A resposta foi pronta e ela quase se reviu no garoto: - “Eu sou o João Maria, e a senhora quem é e o que faz nos degraus do meu avô?” –
- “Eu…Eu sou a tua tia Beatriz, sou a filha do teu avô, e irmã do teu pai” – Respondeu suavemente à criança. Para seu espanto uma voz atrás de si disse-lhe; - “Sejas bem vinda Bia! Há quanto tempo…”
Levantou-se como se um cento de abelhas a tivessem picado, e virando-se de repente ficou frente a frente com um homem alto e entroncado, no vigor dos seu quarenta anos bem conservados e elegantes que a olhava com uma expressão de ternura e zanga, emprestando aos olhos esverdeados um ar travesso e doce. Emudecida, engasgada e ruborescida, Beatriz aguentou o embate daquele olhar e respondendo ao apelo mudo da mão estendida para ela, subiu os degraus pela mão de Raul, capataz da fazenda e filho da velha governanta, com ele penetrou na penumbra da casa e à lembrança regressaram as horas passadas no lar, o cheiro do pão acabado de cozer, o leite morno, as natas batidas pelas mãos da velha Aurora, o odor adocicado das flores campestres que pelas jarras e jarrões ainda se espalhavam pelas salas. Como num sonho atravessou os corredores, os salões, e a saleta privada onde sobre a mesa permaneciam imutáveis o sorriso da mãe preso na sua moldura e a sua primeira vindima bem como a de Jaime. Duas lágrimas correram pelos olhos negros aveludando-lhes a expressão, e a mão de Raul apertou a sua com ternura como que a fazer-lhe sentir que, tal como outrora, ele ainda ali estava à sua espera, atento e pronto.
Sem saber como encontrava-se agora frente a uma senhora que o tempo vergara, embranquecera mas não alterara as feições nem a beleza, apenas os olhos azuis como o céu olhavam agora o infinito. Aurora, prendia-lhe as mãos e percorria-lhe o rosto, dizendo entre lágrimas e sorrisos; - “A minha menina voltou! A minha menina voltou!”. E como antes, Beatriz escondeu no regaço gasto pelos anos o rosto onde afogou as lágrimas, as dores e a revolta de mais de vinte anos chorando como criança abandonada.
Duas mãos calejadas prenderam-na pelos ombros sacudidos pelos soluços e a voz quente e ainda forte do pai murmuraram-lhe ao ouvido; - “Sejas bem vinda Beatriz à casa, ao amor, à família e à tua terra. As uvas, o xisto, o vento e o rio aguardam as tuas mãos para mais uma vindima. Vens?”

21 comentários:

O Profeta disse...

Quanta saudade do cheiro a uvas maduras...


Esta é a alma que voa de um Profeta
Ao encontro do teu sentimento
Este é o sal de alva espuma
Que te ofereço e diadema de espanto…

Olhos de alma, da tua alma
Quero-os no cais da minha chegada
Espero por ti em manto de ternura
No encontro da minha caminhada


Bom fim de semana

Mágico beijo

jo ra tone disse...

Linda história esta,
e o regresso a casa

Não Há terra mais bonita que a nossa.
Onde nascemos, onde vivemos, onde crescemos, e começámos a entender o rumo das nossas vidas.

Bom fim de semana

Juℓi Ribeiro disse...

Luar:

Que texto maravilhoso!
Que lindo regresso!

Estou com problemas de saúde
por isso tenho estado ausente.

Não esqueço a tua delicadeza
e sensibilidade.
Adoro ler tuas poesias e textos.
Beijo.

®efeneto disse...

...uma historia com sabor a uva e verdade. Um beijo de agradecimento pela visita.

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá minha querida, lindíssimo texto... Como só tu sabes escrever... Bom domingo!!!
Beijinhos de carinho,
Fernandinha

Kalinka disse...

Dizem os blog-expert que a melhor maneira de acabar com um blogue é fazer longas pausas, terminar e depois voltar, enfim, parecer inconstante...
Isso faz com que os leitores percam o interesse e desapareçam.
Será mesmo?

Percebi que a vida não se arruma, puxam-nos o tapete a toda a hora...e, estou mesmo decidida a «fechar» o meu kalinka.
Peço desculpa a todos e estás entre eles, que sempre me deram força nos momentos mais difíceis.

Muito obrigada a quem me visita.

Beijinhos.

®efeneto disse...

...de passagem para apanhar um cacho e agradecer a sua visita. deixo cair um beijo de amizade.

Ana Luar disse...

O regresso do filho prodigo... :) Sabes....... das lembranças mais bonitas da minha juventude foram as épocas das vindimas... dos risos dos meus irmãos e dos meus pais e restante familia... e depois o pisar as uvas coisa que eu adoravaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa fazer.

Foi bom voltar a esses tempos

beijo eterno minha amiga querida.

jo ra tone disse...

Boa semana para ti
Bjo

Um Momento disse...

Ai as vindimas...
Recuei uns bons anos no tempo:)

Belo conto, com o regresso de Beatriz... como diz o ditado..."o bom filho á casa torna..."

Adorei

(*)

The Hidden Camel disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Suave toque disse...

"Solidão não é a falta de gente para conversar,
namorar, passear ou fazer sexo... isto é carência.
Solidão não é o sentimento que experimentamos
pela ausência de entes queridos que não podem
mais voltar... isto é saudade.
Solidão não é o retiro voluntário que a gente
se impõe às vezes, para realinhar os pensamentos...
isto é equilíbrio.
Tampouco é o claustro involuntário que o destino
nos impõe compulsoriamente, para que revejamos a
nossa vida... isto é um princípio da natureza.
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado...
isto é circunstância.
Solidão é muito mais que isto...
Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos
e procuramos em vão, pela nossa Alma !!!"

Desejo um feliz final de semana.

Beijo de carinho

Elcia Belluci

®efeneto disse...

Aquele pequeno quadro a óleo
que na rua vi pintar
colheu-me a atenção.
A beleza figurativa do tema,
a delicadeza da autora.
O dinheiro é pouco
estamos no fim do mês.
Com esforço compro-o.
Nele diz:
Amigo/a BOM FIM DE SEMANA

O Profeta disse...

Passei para te deixar um doce beijo...

Anónimo disse...

Continuas a escrever maravilhosamente. Um beijo grande

Whispers disse...

Ola Minha querida!

Antes de qualquer coisa quero te agradecer as tuas palavras, me tocaram bastante, chorei as ler, senti o teu abraço, olhando a vida pensando que o amanha é possível ainda de acontecer.
Escreves muito bem, sempre te adorei ler, mesmo que eu ande distante e dividida entre a magoa, venho sim muitas vezes aqui ler e sentir a tua forca positiva
Obrigado, se o mundo tivesse pessoas lindas de alma como tu, o Mundo seria muito melhor
Bom fim de semana e mil beijos de amizade
Rachel

luar perdido disse...

Ao caro/a Hidden Camel, apenas duas palavras;
Gosto de responder a quem dá a cara e não se faz "hidden" atrás de um nome apenas.
Gosto de pessoas não de cobardes.
Agradeço a visita mas despenso este tipo de comentários, ou então tenha a coragem de se assumir.

@ngel disse...

Minha doce amiga
Consegui viver cada momento desta linda historia...
Amiga esse tal camel andou em muitos blogs a insultar...
O desprezo é a melhor resposta.
Deixo te um beijo cheio de carinho
M@ri@

The Hidden Camel disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Suave toque disse...

As páginas da vida são
cheias de surpresas...
Há capítulos de tristeza,
mas também de alegrias,
Há mistérios e fantasias,
Sofrimentos e decepções.
Por isso, não rasgue
páginas e nem solte capítulos,
Não se apresse a
descobrir os mistérios.
Não perca as esperanças,
Pois muitos são os finais felizes.
E nunca se esqueça do principal:
No livro da Vida,
O Autor é Você!

Desejo-te um excelente final de semana, cheio de alegrias...

Grande beijo de carinho

Elcia Belluci

®efeneto disse...

Sento-me nesta cadeira
No meio da sala
No meio do nada

Penso nos passos que dou contra o tempo
Os olhos que baixo por causa do vento

Vento que me toma os sonhos cálidos e os pinta de vermelho
Sangram lágrimas sem choro
Sem voz
Murmuram segredos

Desenham-se-me no rosto esses esboços do silêncio
Esses que apago e esborrato
E de novo se pintam em telas contra a minha vontade

Rasgo as folhas de papel em branco
Queimo os lápis de madeira que insinuam escravinhices

Dos meus não ditos não há-de falar
Deixem-me sentir, aqui, a dor vermelha de não saber amar
Essa condição de ignorante eterno
Para sempre um boémio nos lençóis alheios...
Frios, gélidos...
Sem sabor nem cheiro...
Ausentes na minha vontade...
Amargos

Aquecem apenas esta minha pele que arrefece

Pensar que um dia me podia aquecer no leito dessas desconhecidas sem rosto...


Que distraído sou...
Pois estava-me a esquecer de desejar
Um fim-de-semana com muita amizade dentro

O TEMPO PERDIDO NÃO SE RECUPERA

As palavras lançadas não voltam atrás, o tempo perdido já não tem retorno e a vida esvai-se, no silêncio voraz. Fica o caminho, diluído, sem...