quinta-feira, junho 21, 2007

AZUL-COBALTO



O sol batia a pique no azul-cobalto das águas profundas e ricas que, eriçando-se, embatiam com fragor nos rochedos contorcidos e negros, quais gritos mudos de erupções ancestrais. A areia escura, quente dos ardores diurnos, pisada por inúmeros pés parecia querer dizer que a deixassem repousar naquela hora em que o seu enamorado amigo, que lá do alto a beijava todos os dias, sobre ela lançava o seu corpo de astro luminoso, irradiando luz, calor e beleza.
A praia ficou deserta, o Inverno vinha chegando, e aquele outonal dia era um dos raros em que o sol não se escondera envergonhado e impusera a sua vontade de rei sobre as nuvens empurrando-as para o Pico. Um barquito afoito navegava pelo denso azul cavalgando a ondulação que, com o virar da maré, se fazia sentir mais forte, lá dentro uma silhueta magra, de cabelos ao vento, virara-se para a ilha e os seus olhos perdiam-se de sonhos nas encostas verdejantes que para eles se estendiam, aos poucos uma névoa de lágrimas sentidas inunda-os, descendo mansamente pelo rosto contraído mas de feições doces e magoadas. O verde da terra chamava-a em surdina, o tapete de vários tons bordado pela mão invisível do Criador estendia-lhe os seus braços eternos de amante sequioso e sempre desperto, a natureza prendia-a com os seus laços únicos que pessoa ou acontecimento algum desmanchavam. Aquele pedaço de chão, cuspido, arremessado, distorcido pela força telúrica era o seu refúgio, a almofada em que deitava a cabeça dorida e cansada, em que afogava toda a tristeza e desespero de uma vida. Ansiava por pisar o areal bem amado, por correr encosta acima e abrir de novo a porta de madeira da casinha encarrapitada numa das falésias abruptas sobre o mar, por escancarar as janelas, abrir de par em par as portadas pesadas há tanto tempo fechadas, e deixar que o cheiro a maresia, a vento, a sal, a gaivotas e andorinhas do mar, a peixe e a sol inundassem as humildes paredes e o seu coração destroçado.
Aos poucos a ilha crescia, as formas femininas, arredondadas ou esguias das montanhas tomavam mais forma, deixavam de ser uma massa difusa para serem um manto de hortênsias floridas, aqui e além salpicadas de azáleas rubras e rosadas, e das rocas, a que ela chamava lanternas chinesas, com o seu colorido inconfundível e adocicado. Lá bem no alto já se apercebiam as copas ondulando ao vento fresco que deste lado da ilha sempre se fazia sentir. E dos seus olhos corriam duas cascatas cristalinas como aquelas outras na sua frente que das alturas se desprendiam lançando as suas águas puras no imenso azul do mar, como era a um tempo bom e duro regressar! A sua ilha, o seu bem amado ninho estava ao alcance da mão, e num momento de insana dor, estende a mão como que querendo tocar, aflorar o solo duro que a viu nascer e crescer, que lhe amparou as quedas de menina, os primeiros passos, o amor feito nas areias macias e escuras entre suspiros e beijos, e as lágrimas de saudade, de desespero e solidão. O motor parou e a ultima onda empurra o barquinho para a areia fazendo-o oscilar ao ritmo da respiração marítima, deixando a imaginação à solta quase que pode sentir o palpitar do corpo escuro e enorme das baleias e dos cachalotes com os quais tantas vezes partilhara as águas. Descalça enterra os pés na areia quente e sente de novo o sangue a percorrer-lhe o corpo, as suas veias dilatam-se, as narinas fremem ao sentir o odor doce das encostas ao qual se mistura o inconfundível aroma do mar. Volta costas ao manto azul-cobalto que a trouxe e encaminha-se para o estreito trilho que a conduzirá à pequena casinha lá no alto, de onde, em dias de limpidez vislumbra as ilhas vizinhas, as irmãs do seu cantinho querido e que ama tanto como ao seu pedaço de chão.
Na bagagem trás as memórias das lagoas paradas e silenciosas, dos mergulhos nas suas águas abissais, dos por do sol nas margens solitárias e belas, de ver o nascer da lua redonda e prateada espelhando-se na superfície mansa e calma, negra e misteriosa, trás a paixão estranha e enfeitiçante que aquelas águas sobre si exerceram, as lendas que ouviu, os sonhos que se atreveu a sonhar com os pés a chapinhar na beira d’água, trás o azul da hortênsias que têm um tom diferente ali. O cantarolar das quedas de água pelos mantos verdejantes, perdendo-se não se sabe onde, mais parecendo ao longe um risco branco num quadro verde e luxuriante, trás o cheiro das flores campestres, e as caminhadas pelas matas, trás as horas de meditação frente aos dedos de lava, a pequenez da sua vida frente à força bruta dos Capelinhos, a tarde que passou a olhar o mar sentada no destroço do farol a inventar a história, a imaginar a natureza em ebulição, as mãos que enterrou na fina escória…Trás um pedacinho de vida de cada vivência passada, mas trás o desejo de abrir de novo as suas janelas sobre aquele azul-cobalto a perder de vista, e de deixar que ventos novos lhe tragam gotas de vida. Quem sabe, ali, de novo, no seu espaço bem amado a vida lhe seja finalmente favorável, mãe em vez de madrasta como até então…
E de novo o azul profundo, o vento salgado, o sol doirado e o pio das aves beijou a casinha perdida na verde fraga sobre a praia de escuras areias e lava endurecida.

3 comentários:

Moinante disse...

Minha querida Luar :
Está um esplendor este texto , aplaudo de pé .
Senti-me pequenito naquele barco envolto de nevoeiro ...



Um beijo amigo do tamanho do mundo .

Chellot disse...

Esta ilha me encantou. Queria estar nela agora.

Beijos de Sol e de Lua.

Phantom of the Opera disse...

Sou Lu@r e tb me sinto perdido. Belo texto.

:)

O TEMPO PERDIDO NÃO SE RECUPERA

As palavras lançadas não voltam atrás, o tempo perdido já não tem retorno e a vida esvai-se, no silêncio voraz. Fica o caminho, diluído, sem...