Acordou
no escuro do quarto silencioso e calmo, apenas a respiração pausada de anciã se
ouvia. Lá fora o sol já brilhava alto no céu azul. Mas isso não importava,
pouco sentido fazia. Ali deitada no ambiente morno e aconchegante onde o medo e
o desconforto não entravam, estava sossegada, quase feliz. Mas essa sensação
não iria durar muito mais. Não que ela soubesse de antemão o que se ia passar,
isso não acontecia há alguns anos. Por agora limitava-se a ficar numa espécie
de limbo, entre a semi inconsciência e uns laivos da realidade que a rodeava.
Dentro
em breve o drama iria começar; Ter que se levantar, ter que se mexer, lavar,
vestir, comer… O que lhe passava na ideia, ninguém sabia, apenas quem estava de
fora recebia as reacções mais ou menos bruscas, mais ou menos duras e
irritadas. O fosso entre a realidade e o que era a “sua” realidade crescia cada
vez mais. Porque tinha que se levantar se estava a dormir tão bem sem trazer
problemas a ninguém? Porque tinha que se lavar e vestir? Mas porque não a
deixavam ficar quieta, calada e sossegada? E pronto lá começava a guerra, a fúria
incontida e descarregada sem qualquer controle. Se as situações que aconteciam
eram contra o que queria, reagia com agressividade. E ficava por perceber se
era o medo, se era o desconforto que as despoletava. Ultrapassada a primeira
guerra, que tantas e tantas vezes passava por deixa-la sozinha na casa de banho
por alguns minutos, vinha a segunda e talvez mais dura e difícil guerra; comer.
Enquanto a sua cabeça não a atraiçoara não fora uma pessoa de comer muito,
aliás nunca se lhe ouvira a frase; “tenho fome”! E agora que os circuitos
cerebrais estavam mais débeis, todo e qualquer tipo de alimento era sempre
saudado com um; “Não quero, não tenho fome”, desespero de quem tinha que tratar
e prover ao seu bem-estar e vida. Havia muito que a mastigação e a deglutição
tinham perdido a coordenação. Se mastigava não engolia, e para engolir não podia
ter nada que mastigar, bastava encontrar um pedacinho de algo sólido na comida
passada para ser posto na borda do prato. Mas se se lhe apresentava comida passada
era outro desespero, queria comida como os outros e era impressionante como não
tinha a noção das suas limitações.
Que mistérios encerra o cérebro humano!
Por
agora reina a calma e depois do stress de
levantar e comer algo, a “normalidade” está estampada no rosto. Mesmo sendo uma
ilusão, parece que o tempo voltou para trás e os anos e a doença se apagaram. A
mansidão no tom de voz, os gestos coordenados e certos, a conversa com tino,
coerente e pouco repetitiva. Uma paz ilusória mas tão boa invade o ambiente da
sala… O sol da rua inunda estes momentos e empresta-lhes uma beleza que quase
parece eterna, quase parece normal. Mas o sorriso já denuncia o alheamento, e
paira no rosto sem expressão, a neblina do esquecimento instalou-se de novo…
Foi
como que um raio de sol que surgiu num dia de temporal e que as nuvens carregadas esconderam rapidamente.
4 comentários:
Apenas com algumas variações de uns para os outros, a vida acaba sempre mal...
Vejo pessoas assim todos os dias.
Excelente texto, gostei, ainda que o tema não seja muito alegre...
Boa semana, querida amiga.
Beijo.
O texto descreve, sentidamente como um ambiente vivido pela autora,uma fase da vida difícil de tantos de nós e muitos mais são afastados da casa e da família porque não quer sentir nem ter trabalho, por falta de amor, por quem tudo lhe deu...
Beijinho, Querida Paula, e parabéns pela sensibilidade,
ZCH
Belissimo. Quanta realidade neste delicioso texto!
Bjus
Querida amiga, voltei para ver as novidades.
Aproveito para te desejar um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
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