segunda-feira, junho 25, 2018

A VIAGEM





Nos primeiros rubores da aurora daquela nova manhã, talvez a última da sua vida, olhava, insone, o tecto. Pela cabeça derrapavam mil pensamentos, mil imagens, mil momentos; estilhaços de uma vida que, por uma razão ou outra, lhe enchia, agora, as horas.

Viagens a mundos desconhecidos, outras culturas, outros rostos e outras cores. E os cheiros? Ah! Os cheiros… A sal, a sol e calor abrasador. A especiarias – canela, açafrão, cravo, hortelã. A verdes prados a perder de vista, a maçãs acabadas de colher. E o que dizer dos braçados de rosas e jasmins? Ou das envergonhadas violetas silvestres; discretas, camufladas, escondidas aos seus pés. Cheiro a chuvas de Verão e a terra acabada de regar. Cheiro a sementes a brotar. Tantos cheiros, nos seus quase 80 anos.

Palavras, todas, as ditas e não ditas, escritas e por escrever. Cada poema e cada história. Umas contadas em voz alta para embalar algum petiz, outras murmuradas, em arroubos de paixão, sem esquecer as declamadas, aquelas que lhe vinham da alma, ditas com emoção. E todas as que guardou, trancou com raiva e fúria, pisou a pés para não doer. As que engoliu para não ferir, e as que mordeu para não mostrar a ferida.

As pessoas que povoaram a sua, geométrica, vida; boas e más – menos boas -, porque não há gente má. Ou assim gosta de pensar, porque acredita no coração humano, apesar do que a vida lhe mostrou. Os seus mais amados. Os seus mais queridos e mais próximos, aqueles que lhe haviam dado a mão. Os que, sendo mais amados, esboroaram o seu coração, e aqueloutros, mesmo de longe, que lhe deram luz para o caminho. Todos os que apenas a usaram, e todos os que se afastaram sem perceber bem a razão. Cada um que entrou, ou saiu, em cada estação do seu comboio – foram todos – vida sua, sem excepção.

O que sentiu, e sentiu tanto, tão intensamente; aliás, só sentiu! Podia resumir a sua vida com uma panóplia de sentimentos. Nenhum pintor usou tanto, nem tão perfeitamente, a paleta do sentir como ela. Da tristeza profunda, afogando o desespero, para a nostalgia de um futuro sem rumo, passando pelo amor-amigo, com a força de mil erupções, com a garra de uma leoa defendendo a prole. Até chegar ao seu “estado de graça” – o amor –, o verdadeiro, o mais puro, o mais intenso, mas também o mais destruidor. Não havia cruzado a limiar do ódio, e disso se orgulhava, naqueles balbucios de manhã a nascer. Desgostara, desprezara, até, afastara, mas jamais: jamais, odiara. O seu coração não conhecia esse sentimento, por muito que o magoassem, havia sempre um brasido de amor que não se extinguia e que, ela, acalentava e fomentava, cuidava como tesouro precioso.
E agora… agora o tempo havia passado, o seu livro estava quase todo preenchido, poucas linhas faltavam. Qual seria a sua nota final? O seu epílogo.

Um sorriso doce e débil, enruga a face molhada de juvenis lágrimas. Os seus olhos, gastos, cansados, de anos de observar e se demorar nas coisas, mantinham o aveludado tom acastanhado das montanhas que, estoicamente, amava. Não, não iria escrever mais nada; tudo fora dito – o que havia para dizer -, e tudo fora escrito – o que podia ter sido -, caberia ao Anjo do Final encerrar o seu último capítulo. Num suspiro etéreo pensou que gostaria que as derradeiras palavras fossem:


Embarcou na nau do amor, atravessou para a outra margem, na serenidade de uma rosa que se desfolhou, numa manhã de outonal silêncio.

Lágrimas de lua

terça-feira, junho 12, 2018

ESBOÇO INCOMPLETO




Sou o que as tintas do pintor pintaram
numa tela inacabada de tempo sem tempo.
Pintura que amarelece no pó intemporal
de um imponderável caminho sem volta.
Sou o que os olhos das crianças sonharam,
pelo caminho de pedras negras, em contratempo.
Sou o milhafre que no céu paira, imperial,
e sou o que não sou, sem mágoa nem revolta.

Vogo numa brisa suave de Verão serôdio e manso
onde habitam borboletas e risos distantes,
maçãs rubras e algodão doce puxado do céu.
Vogo nas asas de um golfinho pigarço de amor.
Olho o mundo do alto de uma fraga e danço
no fio de uma navalha, romba, de esperas agonizantes.
Escrevo nas involuções de um virginal véu,
que mãos calosas bordaram com ardor.

Sou o que não sei e o que sei. Sou, apenas sendo,
e vou onde não sei ir, nem de onde sei voltar,
porque o caminho perde a estrada, perde o norte
e perde o esteio.
Pé ante pé, vou; andando sempre e nada tendo,
e dou o que sou e não sou, porque dando, sei estar.
Amalgama de retortas linhas, de vazios plenos, sem sorte,
sem coragem nem receio.

Apenas sou… o que as tintas de um pintor esboçaram

Lágrimas de lua


O TEMPO PERDIDO NÃO SE RECUPERA

As palavras lançadas não voltam atrás, o tempo perdido já não tem retorno e a vida esvai-se, no silêncio voraz. Fica o caminho, diluído, sem...