Nos primeiros rubores da
aurora daquela nova manhã, talvez a última da sua vida, olhava, insone, o tecto.
Pela cabeça derrapavam mil pensamentos, mil imagens, mil momentos; estilhaços
de uma vida que, por uma razão ou outra, lhe enchia, agora, as horas.
Viagens a mundos
desconhecidos, outras culturas, outros rostos e outras cores. E os cheiros? Ah!
Os cheiros… A sal, a sol e calor abrasador. A especiarias – canela, açafrão, cravo,
hortelã. A verdes prados a perder de vista, a maçãs acabadas de colher. E o que
dizer dos braçados de rosas e jasmins? Ou das envergonhadas violetas
silvestres; discretas, camufladas, escondidas aos seus pés. Cheiro a chuvas de
Verão e a terra acabada de regar. Cheiro a sementes a brotar. Tantos cheiros,
nos seus quase 80 anos.
Palavras, todas, as ditas
e não ditas, escritas e por escrever. Cada poema e cada história. Umas contadas
em voz alta para embalar algum petiz, outras murmuradas, em arroubos de paixão,
sem esquecer as declamadas, aquelas que lhe vinham da alma, ditas com emoção. E
todas as que guardou, trancou com raiva e fúria, pisou a pés para não doer. As
que engoliu para não ferir, e as que mordeu para não mostrar a ferida.
As pessoas que povoaram a
sua, geométrica, vida; boas e más – menos boas -, porque não há gente má. Ou
assim gosta de pensar, porque acredita no coração humano, apesar do que a vida
lhe mostrou. Os seus mais amados. Os seus mais queridos e mais próximos,
aqueles que lhe haviam dado a mão. Os que, sendo mais amados, esboroaram o seu
coração, e aqueloutros, mesmo de longe, que lhe deram luz para o caminho. Todos
os que apenas a usaram, e todos os que se afastaram sem perceber bem a razão.
Cada um que entrou, ou saiu, em cada estação do seu comboio – foram todos –
vida sua, sem excepção.
O que sentiu, e sentiu
tanto, tão intensamente; aliás, só sentiu! Podia resumir a sua vida com uma
panóplia de sentimentos. Nenhum pintor usou tanto, nem tão perfeitamente, a
paleta do sentir como ela. Da tristeza profunda, afogando o desespero, para a
nostalgia de um futuro sem rumo, passando pelo amor-amigo, com a força de mil
erupções, com a garra de uma leoa defendendo a prole. Até chegar ao seu “estado
de graça” – o amor –, o verdadeiro, o mais puro, o mais intenso, mas também o
mais destruidor. Não havia cruzado a limiar do ódio, e disso se orgulhava,
naqueles balbucios de manhã a nascer. Desgostara, desprezara, até, afastara, mas
jamais: jamais, odiara. O seu coração não conhecia esse sentimento, por muito
que o magoassem, havia sempre um brasido de amor que não se extinguia e que,
ela, acalentava e fomentava, cuidava como tesouro precioso.
E agora… agora o tempo
havia passado, o seu livro estava quase todo preenchido, poucas linhas
faltavam. Qual seria a sua nota final? O seu epílogo.
Um sorriso doce e débil,
enruga a face molhada de juvenis lágrimas. Os seus olhos, gastos, cansados, de
anos de observar e se demorar nas coisas, mantinham o aveludado tom acastanhado
das montanhas que, estoicamente, amava. Não, não iria escrever mais nada; tudo
fora dito – o que havia para dizer -, e tudo fora escrito – o que podia ter
sido -, caberia ao Anjo do Final encerrar o seu último capítulo. Num suspiro
etéreo pensou que gostaria que as derradeiras palavras fossem:
Embarcou na nau do amor,
atravessou para a outra margem, na serenidade de uma rosa que se desfolhou, numa
manhã de outonal silêncio.
Lágrimas de lua