Levava
às costas a vida inteira e nos olhos o pavor do mundo. Todo o pavor que os seus
poucos anos comportavam. Nos pés uns sapatos esburacados e rotos,
esfrangalhados de todos os sonhos de menina. E ela adorava aqueles sapatos!
Como tinha ficado feliz quando a mãe lhos dera! Parecia uma princesa com eles…
Os seus cabelos finos e escuros em doces ondas sobre os ombros e os pezitos
delicados calçados com aqueles tesouros azuis com um lacinho do mesmo tom e a
tira com fivela que prendia ao tornozelo magro escondido sob as meias quentes
que a resguardavam do frio do Outono adiantado.
Tinham
passados apenas uns 20 dias e os seus tesouros azuis eram agora uns destroços
como os seus desejos e sonhos de criança. Agora ia empurrada pelo vento que
açoitava duramente os corpos dobrados sobre si mesmos para se protegerem das
bátegas de chuva gelada e das vergastadas da ventania. Ia sem saber para onde,
nem muito bem porquê. Ia apenas, na horda de adultos e crianças que tropeçavam
na lama e nas pedras que o caminho da guerra lhes tinha dado. Entorpecida e
anestesiada nada importava, só caminhar, andar em frente. Já não sentia a falta
do colo do pai que a carregara durante algum tempo e que perdera numa das
muitas bermas que calcorreara, nem tão pouco o calor do corpo da mãe nas noites
gélidas e imensas, porque também ela ficara algures por uma das inúmeras estradas
que haviam palmilhado. Ou do irmão um ano mais velho que ela e que em dada
altura lhe largara a mão também ele se perdendo no meio daqueles corpos
angustiados, amedrontados, suados e esgotados mas que se obstinavam a
prosseguir nem que fosse de rastos até tocarem o tal almejado “mundo novo”. A “nova
esperança para além das fronteiras”, a “nova vida sem guerra nem fome”. Para ela eram palavras. Não tinha ainda a noção do que queriam dizer, os seus 7 anos tinham crescido
abruptamente em semanas, mas… Continuava a ser uma menina que queria brincar
com as suas amigas, as bonecas, e a sua bicicleta novinha em folha que um muro
rebentara após o detonar de uma bomba. Pelo olhar embotado de medo, desespero e
desesperança passavam ainda as lembranças de tempos felizes, de risos e de dias
calmos. Mas mesmo esses laivos de normalidade iam aos poucos sendo sugados pela
dureza do caminho que trilhava, sozinha. Mas no meio da multidão que com ela
fugia, se empurrava e digladiava para encontrar um lugar mais abrigado para
passar algumas horas de um descanso que era apenas um breve pestanejar. O
cansaço, a fome, o frio e a sede iam reduzindo o rebanho humano que se lançara
pelas montanhas e pelas planícies do país a ferro e fogo. Só precisavam atingir
a fronteira, fosse lá isso o que fosse. Ela só queria sentar-se e descansar o
corpo esgotado de dias e dias sem tréguas. Havia adultos que por vezes se
juntavam a ela e lhe davam algo para comer ou beber. Ela era mais uma entre as inúmeras
crianças do grupo que já tinham perdido os pais e os familiares na caminhada.
Por isso tentavam junta-la ao grupinho infantil para que não se perdesse. Eles
eram a esperança do povo. Eles tinham que sobreviver, fosse como fosse. Eram o
futuro!
Finalmente
a fronteira! E mais não sei quantos dias para poder passar. O seu grupo de
meninos e meninas passou inteiro, todo junto! Como se fosse um corpo só.
Empurrando-se e oscilando como uma aranha pequena numa teia enorme. A teia da
vida que os enredou e lhes roubou os sonhos. Que lhes pôs cores negras e sem
luz nos olhos infantis. Que lhes pôs o medo na alma e a tristeza no coração,
que lhes vestiu os corpos franzinos de farrapos e amargura. Que lhes pôs nos
pés a dor e a solidão. Passaram todos sem olhar para trás, sem saberem quantos
adultos haviam passado como eles. Sem saberem o que ia suceder agora que
entravam na “nova esperança”, que entravam num mundo a que tinham ouvido chamar
“Europa”. O que iriam fazer, para onde iam ser encaminhados, o que lhes estava
reservado. Pelo menos tinham conseguido chegar e sentiam-se orgulhosos dos seus
pés rasgados e rostos sujos e emagrecidos. Sentiam-se alegres porque o sonho
que os pais lhes tinham posto nas cabeças estava, ao que parecia, cumprido.
Estavam a salvo da guerra, das bombas a rebentarem nas ruas a cada passo, das
casas destruídas e dos corpos mortos pelas estradas das cidades. Do cheiro a
doença e destruição, a morte, que se colava à pele e aos cabelos. Sim eles
tinham chegado, representasse isso o que quer que fosse.
…Entrara
em casa a medo. Ali tudo era silêncio e luz. Um sol quente e dourado entrava
pela janela e inundava a caminha com uma colcha alegre feita de tecidos
coloridos e acolchoada. Devia ser quentinha e aconchegante! Mas ela já não
sabia o que isso era. Ali, no meio do quarto ouvindo a voz meiga e baixa da
senhora que a acolhera, agarrava ansiosa e apavorada a sua mochila suja e meia
desfeita e baixava o seu rostinho macerado olhando para os seus tesouros azuis
que ainda lhe enfeitavam os pés gelados e roxos. Também eles haviam sido uns
heróis, tinham chegado com ela. Um dia, quem sabe, não teria uns sapatos novos
de princesa, desta vez num mundo de paz, amor e harmonia….