A imagem que o espelho reflectia era a de um rosto mais velho. A pele, que jamais fora brilhante e bonita, agora tinha a marca que os anos iam impondo aos poucos, a flacidez ia tomando lugar, e as rugas, ainda finas mas já visíveis, iam deixando pinceladas de vida passada e vivida.
Nunca gostara de espelhos, durante toda a sua vida olhava para eles apenas para ver o conjunto de si mesma se lhe agradava ou se tinha que mudar algo, mas nunca dedicava atenção à sua imagem reflectida naqueles pedaços de vidro espelhado, parecia-lhe pura perda de tempo estar em contemplação e admiração de si mesma, o espelho era para ver como estava o todo, nada mais.
Mas agora olhava com mais atenção aquele rosto que lhe devolvia o olhar e o meio sorriso, olhava e via a percurso dos anos. Não que a assustasse, ou que a deixasse triste ver que envelhecia. De todo! Apenas lamentava o tempo que desperdiçara, a estrada que percorrera não fora a melhor, mas...Provavelmente também não fora a pior, fora a que tivera que ser, a que fora "superiormente" decidida, se é que assim podia pensar e dizer. Enquanto escovava o cabelo já com algumas cãs, das quais gostava bastante e exibia sem medo, ia observando a expressão do seu rosto; As faces descaiam já um pouco, as rugas de expressão nos cantos dos lábios eram mais notórias agora, e as finas linhas nos cantos dos olhos também, os lábios continuavam os mesmos, carnudos sem ser em exagero e descaídos nos cantos, o que lhe dava um sorriso quase sempre triste excepto quando abria o riso e aí sim, era menina de novo, as suas gargalhadas continuavam bem dispostas e alegres como sempre. O pescoço afinara e também já se notava alguma pele sob o queixo. Estava a ficar velha!
Mas gostava no geral do que via, só lá bem no fundo do olhar que o espelho devolvia se notava a tristeza do que perdera, do que não vivera, do que não fizera, de todas as sementes que não plantara à beira do seu caminho, e dessas outras que haviam dado flores e que por isto ou aquilo haviam secado no Estio da vida, ou no Inverno da morte. Deixava que a memória a atraiçoasse e a levasse de regresso ao passado, ao seu passado; - Revia os amores infelizes, jamais conseguira ser verdadeiramente feliz no amor. Tivera bons momentos, mas fugazes e breves, nada que guardasse ainda a seu lado, tudo lhe escorrera entre os dedos como água de um ribeiro que jamais pára, jamais se detém e sempre flui. Revia as amizades grandes e duradouras, belas e fortes como o amor nunca fora, e aí sim o espelho devolvia-lhe um sorriso aberto de boas lembranças e momentos alegres e felizes. Revia a família, aquela família que ela tanto amara de menina e que depois de adulta a desiludira tanto e tão profundamente, quantas lágrimas não haviam caído daqueles olhos escuros que no espelho se enchiam de novo da névoa húmida que sempre os povoava mal se lembrava de certos episódios mais marcantes. E o tempo ia recuando sem piedade, mostrando a vida que levara, a estrada já percorrida e que se afigurava como uma dessas rectas intermináveis em planuras Alentejanas em plena Estiagem; Uma longa fita de alcatrão negro apenas, pisado, marcado pelo rodado dos automóveis que vão e vêem, vão e vêem incessantemente, sem mais cuidados, apenas passam na voracidade do tempo e na urgência das horas e das distancias.
Era tempo de parar o devaneio. O cabelo estava penteado, o espelho mostrava-lhe uma mulher madura, sobriamente arranjada mas com gosto e descrição como sempre fora. O conjunto parecia-lhe bem!
Apagando a luz da casa de banho, encostou a porta deixando lá dentro o reflexo de um sorriso eternamente triste, e uns olhos povoados de lágrimas, mas a mulher que pisou a rua ia de novo segura, madura e serenamente confiante, a sua máscara diária que raramente a traía.