domingo, julho 08, 2007

TEMPORAL

O vento fustigava em ondas de raiva a vegetação ressequida da orla costeira, a ventania salgada e forte vergava duramente os caules dando a impressão, a quem via, de um mar verde em convulsões ou espasmos de maternidade. Era sempre assim a chegada de mais um Inverno, as neblinas glaucas envolviam a costa no seu manto de arrepiante e sepulcral silêncio, as aves aconchegavam-se nos ninhos tufando as penas e tentando conservar o calor dos corpos juntando-se mais às companheiras com quem partilhavam o espaço, e, se nova geração ainda havia, a mesma era coberta pelos corpos enregelados dos pais.
As águas rugiam tocadas pelo sopro duro de Eolo que no seu búzio os quatro ventos chamava a plenos pulmões. O fundo marítimo revolvia-se como se milhares de mãos o agitassem sem descanso e o empurrassem para cima, trazendo à tona areia, sedimentos, lixo e a ira do próprio mar, as ondas atiravam os seus corpos de alva espuma de encontro aos rochedos, ás fragas e ás areias frias e solitárias.
No alto da falésia uma figura alta, descarnada e firmemente cravada no solo olhava, alucinada o bravio oceano, concentrando em si aquela força inóspita e bruta, como que sugando a energia das águas em rebelião. Os cabelos de neve agitavam-se ao vendaval, a mão, seca, e engelhada de muitos e duros trabalhos segurava firmemente o bastão tão nodoso como os anos de ancião, a longa barba tão branca como as cãs esvoaçava como algodão, adoçando o rosto tisnado e os traços duros e magoados, só os olhos conservavam a meiguice do olhar de criança; Azuis como miosótis, ainda frescos e vivazes, quase alegres, traziam áquele rosto fechado e ainda vigoroso um toque de doçura, um leve traço de mansidão e paz. A seus pés o mar, esse traiçoeiro e encantador mar, contorcia-se, rugia, debatia-se qual fera enjaulada e prestes a rebentar com as grades da clausura, mediariam forças um e outro? O estrondo das águas aumentava e a força da ventania também, lá bem no alto o velho homem do mar enfrentava sem se mexer a fúria do ar, o seu envelhecido corpo sustentava com um insuspeito vigor o embate e fazia gala em, de cabeça erguida, olhos pregados no infinito e pés bem assentes no lajedo, desafiar a natureza.
Quantas vezes ali estivera, no mesmo lugar, segurando nos braços o corpo amado, sussurrando as palavras mais doces, as juras mais sinceras, o amor mais belo, quantas vezes ali estivera rindo dos primeiros passos do fruto desse amor, ensinando, de costas nas rochas, os nomes de todas as estrelas, segurando a pequenina mão entre as suas matando o medo das noites de trovoada, e, em dias assim, saudando o Inverno, esse dono dos vendavais, mais temido que amado, mas que ele ensinara a respeitar e a amar. Mais tarde, ali viera chorar calado o amor cedo arrebatado dos seus braços e que aquele mesmo mar levara para bem longe de si, mas mesmo assim o encanto das estrelas nas noites calmosas de estio e o filho ainda novo por criar davam-lhe forças para continuar. E um dia, esse belíssimo mar, essa águas que tanto amava roubaram-lhe de vez a vida tragando, num dia como este, o único bem que lhe restava, o fruto amado e querido de um amor sem fim, o filho único.
Desde então vinha a cada chegada do Inverno que passara a odiar profundamente, desafiar a tempestade, medir forças com a natureza, orgulhosamente só, duramente fustigado pelo vendaval, decididamente cravado no solo inóspito, mergulhava o olhar ora desvairado ora meigo, ora magoado ora apaixonado naquele abismo de espuma. E a sua longa barba alva era como que um lenço acenando no alto da fraga ao amor da sua vida.

2 comentários:

Anónimo disse...

Minha querida amiga, é sempre encatador ler-te. Esta história é muito bonita e escrita com aquele encanto que só tu és capaz de por nos teus escritos. Um beijo grande, e venha outra história.

Phantom of the Opera disse...

Hoje vou levar as tuas palavras comigo, deito-me naquele lugar onde recupero forças e no silêncio leio-te.

Beijo Nocturno

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