sexta-feira, setembro 15, 2006

MISTERIOSO FAROL

Na ponta verdejante sobranceira ao mar, elevava-se, branco, silencioso e isolado. A seus pés uma escadaria bem cuidada de uns 50 degraus, o manto verde e o mar, esse seu eterno companheiro beijando-o incessantemente.
De quase todos os pontos da cidade se podia avista o farol; Majestoso nas noites calmas e de temporal, um marco luminoso nas escuras horas em que o sol se esconde e a lua se eleva nos céus.
Já não era a primeira vez que o via, que o apreciava e desejava vê-lo, visita-lo, ouvir-lhes as histórias mudas que tinha no seu coração para contar, histórias de uma vida de pedra e cal sobre os eriçados rochedos que traiçoeiramente se estendiam na sua frente sob o manto azul esverdeado ligeiramente encapelado do oceano.
De cada regresso à sua cidade cúmplice fazia tentativas de alongar os seus passos um pouco mais além para ir ter com ele, aquele farol tinha um imã que a atraía irresistivelmente, trazia-lhe lembranças antigas;
- As primeiras visitas que fizera a um farol pelas mãos do pai, a explicação do mecanismo da luz, da vida do faroleiro, coisas que lhe tinham ficado na memória, e mais recentemente mas com alguns anos também o célebre Farol de Alexandria, ou da ilha de Pharos; Essa maravilha do mundo que as águas haviam tragada muitos e muitos séculos antes, no entanto as descrições da sua alvura de mármore, do porte altíssimo e elegante, de esguias e doces formas, alimentavam-lhe o imaginário e a fantasia, e muito embora este fosse apenas uma pequena amostra, havia uma semelhança que a encantava, vá lá saber-se porque e onde, mas a mente tem destas coisas e quando se liberta a ilusão….
Nessa manhã decidira não adiar mais os seus propósitos e foi confiante e sonhadora que se pôs a caminho, sem nenhum motivo para ser especificamente naquele dia, mas aproximava-se a partida de novo para o ritmo normal e vida diária longe das suas paragens, do seu espaço mais querido, e não queria levar por fazer essa tarefa, não sabia quando voltaria ou sequer se voltaria. O dia estava ensolarado e quente, como é normal por essa latitudes e a brisa fresca vinda do mar agitava-lhe os cabelos ondulados estampando-lhe no rosto a beatitude de quem está em paz consigo e com o mundo. Um ligeiro sorriso aflorava-lhe aos lábios dando a sensação de pensamentos felizes e memórias agradáveis. O seu passo certo levou-a do hotel até à zona portuária e daí, pela marginal, até à mesquita, imensa e poderosa, que como sempre a aguardava de braços abertos, e cadenciados cânticos que do seu interior por vezes chegavam. No final do passeio marginal, sobre o outro promontório um pouco mais baixo e menos debruçado sobre o mar lá se encontrava ele, olhando o infinito, lançando no ar o seu ronco e de noite espraiando a sua luz intermitente sobre o oceano.
A sua paragem obrigatória na mesquita deixou-a para mais tarde, ainda lhe ocorreu o seu poiso favorito sobre uma das conchas de água, forrada a mosaico verde e onde os pombos escreviam as suas mensagens, arrulhavam e deixavam os seus dejectos, mas que a ela não incomodavam muito, e munida de lenços de papel, para lá ia com o seu livro ou caderno e canetas, mas fora apenas um pensamento passageiro e os seus pés viraram-se para as escadas que a levariam ao pontão de pedra que envolve a arredondada baía e onde nas marés vazias se vêm dezenas de homens e algumas mulheres, unas apanham moluscos outros tomando banho. Percorreu a marginal pedestre com calma recebendo o sol em cheio no rosto e a brisa perfumada das ondas. Perto as águas estavam sujas de areia e algas, emprestando um tom acastanhado, mas para além da rebentação, a meio da baia já exibiam o seu tom característico de verde-esmeralda e azul.
Uma mulher sozinha, branca e estrangeira, quase sempre suscita alguma atenção e uns quantos assobios de modo a captar-lhe a atenção., mas ela na sua passada apenas tinha olhos para a sua meta que se erguia um pouco mais longe e as ondas que de manso se vinham quebrar nos rochedos, deixando na mente perguntas variadas;Onde seriam apanhadas as deliciosas ostras que tanto adorava e que sempre faziam parte da dietas das suas escapadelas por aquelas bandas? E onde iria ter o peixe que degustava com prazer e que era tão bem confeccionado nos restaurantes que frequentava? As actividades pesqueiras podia confirma-las no mercado onde ia com frequência, no porto, onde à noite as redes de pesca era tratadas para a próxima saída para o mar, mas lota ainda não vira nem sabia se existiria. E logo o seu coração lhe agudizava a dor da partida dizendo-lhe alto; E se te fosse possível ficar? Como seria? Enquadrar-te-ias, enquadrar-se-iam? Afastou resolutamente os pensamentos sabendo que nada podia mudar o rumo das vidas, e olhou uma vez mais para o seu farol enquanto os seus pés sabendo de cor o caminho, como se predefinido houvesse sido, pisavam a terra batida e a ressumar de sal.
A olhos vistos crescia o farol, meio amarelado agora pela refracção do sol intenso da manhã adiantada, a paisagem circundante delineava-se aos poucos, dali onde por segundos abrandara o passo, já podia ver as escadarias e o verde campo nas traseiras, para a frente era ainda confusa a paisagem, apenas o cabeço eriçado de negros rochedos que pelas águas entravam se identificava. A sua cabeça sonhadora desfiava agora o rosário de leituras que fizera sobre o Farol de Alexandria, e deleitava-se com essas lembranças, parecia-lhe que na sua frente se agigantava aquele pequeno irmão, que crescia e se embelezava, tomava as proporções do outro e a ela era-lhe dada a felicidade de o ver em pé, belo e único, como se o tempo houvesse voltado para trás e ela por um portal do qual desconhecia a existência, entrada ou saída, tivesse penetrado para outra dimensão do tempo e espaço.
O caminho encurtava e em breve se encontrou no primeiro degrau, tremendo de nervosismo pisou a pedra polida e branca e subiu, como em sonhos, os cerca de cinquenta degraus. À volta, só as gaivotas soltavam os seus pios ao vento, as ondas emprestavam o seu rugido ainda calmo de maré vazia, e o vozear de vozes masculinas um pouco esmaecidas e apenas trazidas entrecortadas pelo vento.
Lá do alto o ronco, agora bem forte e ensurdecedor, saía a intervalos certos, algo que seria substituído pela luz horas depois, ou melhor por ela complementado porque houvera noites em que o ouvira emitir o seu som característico altas horas. Deu a volta lentamente tocando a parede que ali era mais suja do que lhe parecera ao longe, e foi caminhando em direcção à ponta sobranceira ás aguas, não encontrou vivalma, e no entanto as vozes faziam-se ouvir, caminhou curiosa e mais decidida esquecidas das horas de regresso, foi até onde podia ir, aventurou-se um pouco sobre os penhascos e debruçou-se para baixo no murete que fazia a fronteira entre o território do farol e o do mar, que lhe parecia em dias de tempestade devia acoitar se não o próprio farol pelo menos o molhe onde estava cravado. E…Nada, mas onde viriam as vozes? Não estava a sonhar, embora aquelas viagens fossem sempre de sonho, mas agora estava acordada e tinha essa noção, louca, estaria louca? Ou seria uma valente insolação? O facto é que continuava a ouvir as vozes, mas não entendia a língua e não era árabe…Estranho, muito estranho, pensou. Estugou o passo em direcção a terra e teve a impressão que acabara de ver uma pessoa, mas…Não, não podia ser, fora alguém que saíra do farol ou algum residente que por ali passara, que tal como ela tinha vindo conhecer aquele guardião das noites. Mais uma vez se encaminhou para a ponta rochosa e observou o oceano na sua frente, perguntou-se o que sentira o outro farol ao ser derrubado no seu esplendor e majestade únicas? Que vivências levara para o fundo do mar? Alguma vez voltaria a ser descoberto, se é que existira mesmo? O menos aquele ali ao seu lado estava bem presente e acordava-lhe gratas memórias.
As horas urgiam e tinha que regressar para o almoço, enfrentava pelo menos uma hora e tal de caminho e agora, com os pés cansados e o sol mesmo a pique não tinha a vida facilitada. Virou-se contra vontade e começou a percorrer o promontório atapetado, já na sombra do farol olhou uma vez mais em direcção ao mar e viu recortados contra o azul imenso do céu as suas vozes masculinas; Um senhor nos trajos de grego rico e um criado, quem sabe, que o acompanhava. Piscou os olhos dizendo de si para si que enlouquecera, e ao reabri-los apenas pode ver um vulto de cinzento, com a djelaba característica a descer os rochedos que minutos antes ela havia ensaiado descer também. Estacou sem saber o que pensar, o que vira na realidade?
Elevando os olhos para o topo do farol e abarcando o céu, limitou-se a sorrir, e a agradecer, fosse o que fosse estivera de facto em Pharos e no seu soberbo farol, concretizara o seu sonho, nada mais importava.

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