O sol batia-lhe em cheio no rosto obrigando-a a franzir-se e semicerrar os olhos apesar dos óculos escuros. Baixou o olhar sobre a praia onde algumas pessoas se aqueciam e tostavam alheias à figura ainda esbelta que projectava a sua sombra sobre a areia escura da pequena enseada.Quantas memórias! Quantas lágrimas! Quantos anos…Ali estava de novo, de vestido branco de linho, uma grinalda de flores nos longos cabelos de sereia e um sorriso de menina nos lábios, a seu lado uma figura masculina, igualmente jovem e sonhadora enlaçava-a ternamente pela cintura. Olhavam o mar, calmo e azul, profundamente azul, e os negros e eriçados rochedos, dedos de lava endurecidos pelas águas.Os cabelos acobreados baloiçavam docemente na leve aragem fazendo cócegas no rosto, que rindo, lhe mordiscava o pescoço em ar de quem se vinga de tão ternas vergastadas. Os pés de ambos, nus, enterrados na areia preta e quente seriam doravante uma marca constante, e nesse preciso momento a jura de amor que haviam feito perante o altar, renovavam frente ás águas que a ambos enfeitiçavam e viriam a ser o seu segundo lar.Ambos adoravam o mergulho em profundidade, ambos Biólogos de profissão, ela mais dedicada à Biologia marinha ele à Biologia em geral, tinham-se conhecido no continente na faculdade e o amor crescera desde então. Já exerciam e tinham um sonho e um projecto em comum; Regressarem à sua ilha natal e nela desenvolverem o estudo, o reconhecimento e preservação das espécies nativas.Casa havia, quer dos pais dele que haviam falecido anos antes, quer dela, que comprara uma vivenda pequena e encantadora sobre uma falésia com acesso, íngreme e difícil, mas acesso mesmo assim, a uma minúscula baía de águas calmas onde por norma iniciava os seus mergulhos e onde fizera o seu “curso” de mergulho com o pai e o tio, anos antes. Aliás a baía era quase exclusivamente deles, e muitos dos apetrechos ficavam na loca de lava bem a salvo das marés. Com as ajudas estatais para o seu projecto tinham voltado e metido mãos à obra, mas antes tinham decidido dar o nó e fazer de dois um só. Tinham casado nessa manhã e ali estavam numa jura muda perante o extenso oceano – Preservar, catalogar e descobrir, estudar e dar a conhecer a fauna e flora das ilhas que tanto amavam. O mar calmo recebia, como beijos, os murmúrios daquelas almas apaixonadas e quem tivesse ouvidos e alma de poeta, poderia perceber a resposta das águas desfeitas em alva espuma, uma resposta de comunhão e aceitação entre homem e natureza, que nos ilhéus é mais forte e mais presente.Rodaram os anos, as estações, os desgostos e as alegrias, vieram dois filhos, e no meio, centro e união entre ambos, o mergulho, o êxtase perante essas águas de um cobalto que jamais alguém igualou, a loucura perante a miríade de peixes, crustáceos, moluscos e plantas que sob as escuras águas se agitam. Horas de paixão, horas de entrega quase física, horas de estudo, de recolha e de observação, milhares de fotografias, e amostras devidamente identificadas e catalogadas. Uma vida dedicada ao mar. E sempre o amor doce e calmo de quem não tem pressa e sabe que a vida corre mansa, as horas das refeições eram passadas em família, os garotos brincando desde muito novitoscom as redes e camaroeiros, com os apetrechos de mergulho e ensaiando os seus próprios dotes, treinando pulmões e corpo para mais tarde acompanharem os pais. Eram uma família feliz, que naquele pedacinho perdido entre céus e mar, fizera um hino a Deus, à natureza e ao amor.A cada ida ao continente, ambos tentavam ser breves e resolver tudo rapidamente, a confusão, o trânsito, as caras fechadas e indisposições constantes de quem por lá habita, não eram situações que lhes fossem agradáveis, por isso limitavam a duas deslocações anuais as obrigações para com a entidade que os apoiava e empregava. Tinham trazido os filhos apenas 4 vezes em toda a sua vida de casados, mas a decisão de os mandar estudar para Lisboa ou Porto já tinha sido ponderada e no caso do filho mais velho decorria já com êxito, já que o pequeno era aplicado e inteligente, a mais nova ainda luta em S. Miguel para se abalançar por o velho continente e voar para um curso que poucas ou nenhumas hipóteses tem nas Flores, mas que os pais por nada querem contrariar.Os anos já se fazem sentir em ambos, mas os mergulhos e explorações continuam, e um belo dia a eles junta-se um novo casal, enviado de Lisboa, para seguir e aumentar o espolio que já tem honras de livro editado, museu montado e videoteca, bem como visitas de estudo quer em terra quer no mar. Mas o oceano por vezes tem o seu feitio muito especial, e recebera as confidencias e promessas deles no 1º dia das suas vidas, recebia-os como filhos no seu seio, deixava-os à vontade, e eles no seu elemento mais querido aproveitavam e gozavam ao máximo esse comunhão consentida e querida.O coração pode ser traiçoeiro, e uma cara bonita, um corpo insinuante e tonificado, podem fazer os estragos de uma lavagem de tanques de petroleiro numa vida feliz e sem mácula. O destino que até ali fora benéfico e amigo para com a “pequena sereia”, como o marido lhe chamava tantas vezes, deu-lhe a provar o fel da traição. Mergulhador por excelência, a ele coube ensinar e vigiar os mergulhos dos continentais. Mas a voz da paixão falou mais alto e acabou por se envolver em escaldante romance com a jovem recém chegada. Voltou a fazer mergulho nocturno, coisa que haviam posto de parte 2 anos antes, por terem apanhado um susto com problemas respiratórios dele, voltou ao mergulho a mais de 30m que também lhe fora proibido, e à escalada para manter a forma. A tudo assistia com o coração em chaga e cada vez mais entregue ao trabalho para não sentir o ferrete da dor. Ele voltava sempre, meigo e comprometido, mas sem conseguir deixar o néctar daquele corpo jovem e pujante que tomara na praia ao luar imenso e claro, louco de paixão.A “pequena sereia” sucumbia a olhos vistos, definhava, mal dormia, ele apercebia-se e tentava por todos os meios emendar o seu erro, mas a jovem sempre se insinuava, e como alcoólico viciado, não resistia.Uma noite em que ambos os casais já se haviam recolhido, e a pequena casa se recortava na negra noite aveludada e morna de fim de verão, ouve-se abrir uma porta devagar; Por ela saem duas figuras, uma mais esguia e outra com as formas que os anos já começaram a marcar. Vão em silêncio, de corpos enlaçados e vultos ás costas, as suas silhuetas recortam-se nítidas contra o breu das águas onde os raios de lua doirada se espraiam mansamente. O ruído do mar é a única companhia destes dois que sorrateiramente para ele se dirigem. Mas o corpo fala mais alto, a carne é mais imperiosa, o desejo mais forte e a ambos já nada mais importa, a natureza repousa, nada os perturba. Deixam de lado os apetrechos de mergulho e entregam-se em arroubos de paixão louca, num frenesim intenso e desmedido sobre as negras areias, como que a relembrar outras explosões, as de um vulcão há muito extinto, mas que deixou as suas marcas indeléveis na ilha.Fatos vestidos, lanternas assestadas, e arpões nas mãos, mais um beijo antes do mergulho e ei-los nas águas, tenebrosas a tais horas em que todo o imaginário nos assola, nadam lado a lado, descuidados de tudo, do mundo, do coração despedaçado que deixaram em terra e que julgavam adormecido, mas que lentamente e desfeito desceu à praia e atrás deles mergulhou.Dirigem-se para uma gruta submarina, não muito fácil de fazer, mas que a experiência dele e a rapidez dela em conjunto resolveriam. Mas as páginas do livro da vida, ditariam um fim trágico àquele mergulho. Apanhados desprevenidos pela enchente, e lançados contra os rochedos afiados, nem a experiência nem a agilidade ou rapidez e robustez os salvariam, e enquanto se acariciavam felizes por terem atingido a gruta, seu sonho de havia meses, são esmagados furiosamente contra os aguçados picos que eriçam a entrada da gruta. Assustados e desnorteados, com uma das garrafas perfurada, as barbatanas dela foram arrancadas dos pés, e as costas dele em sangue, lutam por se manterem vivos, e sobem à tona da água, para encontrarem um mar furioso e encapelado, que os obriga a mergulhos curtos em que dividem a garrafa que sobrou. Mas o oceano não lhes perdoa a traição, o profanar de um santuário que fora pela sua “sereia” descoberto e tão cuidadosamente estudado e preservado, e fustiga tresloucado aqueles dois corpos que aos poucos vão perdendo as forças. Mas um vulto seguiu no seu encalço, e é com imenso esforço e determinação que tenta por todos os meios tira-los da corrente traiçoeira que tão bem conhece e sempre soube evitar, mas na qual tem que se arrojar para os salvar. A “sereia” ora choca de pés nos rochedos segurando o marido nos braços e a amante com o seu próprio corpo, ora se vira e nada de costas tentado puxa-los para o interior da gruta onde acabará por depositar o corpo moribundo do marido e o quase desfeito corpo da amante. O resto da noite passam-na em tormentos mil, ambas tentando mantê-lo vivo e tentando estancar o sangue que jorra abundantemente das feridas dela. No dia seguinte um barco leva-os para o hospital, onde um falece, a outra sobrevive e a outra apenas habita o corpo já que a alma morreu duas vezes….Quantos anos já passaram?...Deixou de os contar, voltava hoje, abria de novo a pequena casinha encarrapitada na falésia, os netos chegariam no dia seguinte, a vida continuara longe dali, no velho continente tão odiado, e que acabara por a receber. De “sereia” ficara-lhe o nome da casa, carcomido pelos anos, pela maresia e pelo vento, e a figura anda grácil de mulher bem madura, os cabelos já não eram longos e o tom cobre já se diluíra nas cãs que emprestavam um ar fino aquela mulher a quem a vida tanto marcara.Mas o azul-cobalto, profundo e imenso ainda a chamava no seu apelo mudo de mar, e as suas profundezas murmuravam aos seus ouvidos histórias mil secretamente contadas, que lhe abriam um ténue sorriso no rosto vincado de “sereia” perdida.
Um local tranquilo onde os raios de lua, feitos palavras, lançam feitiços e enxugam lágrimas
quinta-feira, setembro 14, 2006
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