As notas ecoavam tristes e melancólicas na noite fria, A janela aberta de par em par sobre o jardim cuidadosamente tratado deixava entrar a brisa fria de Outono alto adivinhando já uma invernia dura. Insensíveis ao frio as mãos percorriam seguras o teclado gasto do “amigo” eterno e sempre presente, o piano. Mais ao fundo, como que a acompanhar a música suave e triste, o rugido do mar de encontro às falésias abruptas e cortantes, dava ao quadro um tom funesto e pungente que invadiam o espaço negro da noite.
Alto, trigueiro, na casa dos 40, de compleição mediana e olhos amendoados, de um negro profundo, as mãos esguias e nervosas, e o rosto de traços correctos e algo duros, os cabelos anelados tão negros como os olhos, a boca apertada num rito de dor, tinha a doçura de um beijo, quando se descontraía, o que não era de momento o caso. Mais parecia um traço desenhado por um breve tira linhas, ou finíssimo pincel de um Miguel Ângelo. O seu olhar perdido algures pelo salão, não olhava as teclas que ia ferindo de manso e arrancando delas toda a dor que na alma lhe ia.
O Labrador dormia enroscado perto dos seus pés, e de quando em vez levantava a meiga cabeça e olhava o dono com uns olhos de quem pede que a dor acalme e por fim se perca no tempo que tudo leva e desvanece. Os pesados reposteiros de um grenat escuro com pequenas flores de liz em doirado mais parecendo minúsculas estrelas aliviando o peso da noite ondulavam com vigor e o ambiente foi ficando cada vez mais gelado, mas sempre as mãos compridas e seguras dedilhavam sem parar, saltando, parando, pressionando.
O velho criado veio sem ruído fechar as altas janelas, a medo, como sempre acontecia a cada noite de tempestade na costa e no coração destroçado do seu amo. Não seria a primeira vez que era quase escorraçado do salão, por se ter atrevido a entrar e dispersa-lo dos seus devaneios e dores que só nos sons arrancados ao piano conseguia acalmar. Mas sempre tentava amornar um pouco o ambiente porque o frio já se fazia sentir bem e sabia que o seu amo era homem que apreciava o calor e o sol, não era criatura de neves e frios, esse dom ficara-lhe do grande e único amor da sua vida, a esposa que perdera havia um ano. Ela sim, era a amante das neves, do frio, do Inverno, do vento e das tempestades. Na realidade parecia uma fada branca e frágil, grácil e alta como ele, flexível como um junco e bonita de uma beleza etérea e quase angelical, olhos profundos que mudavam entre o verde cinza e o verde esmeralda, os cabelos médios meios acobreados, e o sorriso sempre aberto no rosto. Mulher a um tempo frágil e segura, corajosa e sem grandes temores arrostava as falésias em qualquer tempo e ao vento norte e rijo se rendia com uma beleza característica que o marido temia e amava ao mesmo tempo. Durante os breves anos de união feliz muitas haviam sido as horas que passaram caminhando dobrados pelo vento pelas rochas negras e rasgadas onde, bem lá no fundo as águas bravias escachoavam incessantemente, mãos dadas e o riso franco nos rostos corados pelo frio, eram horas de prazer que ela vivia com uma sofreguidão inexplicável e que ele bebia oscilando entre o medo de tanta loucura e tanta felicidade. Naqueles picos a mulher parecia um elemento da natureza dura e áspera, perdia a sua candura de menina e tornava-se uma mulher em plenitude como se as forças a invadissem e tornassem noutra Helena, mas não menos bonita ou inquietante, misteriosa e grácil por isso. Amava-a completamente como se ama a vida, como ele amava o sol, as águas frescas e frenéticas na praia pequenina ao fundo dos penhascos, o calor do verão.
Helena deambulava pelo jardim nas manhãs em que a neve cobria as ruas delineadas e sinuosas, com a alegria de uma corça a quem deram um punhado de erva fresca, com um camisolão branco e calças justas manhã cedinho o criado via-a passar pelas janelas da cozinha onde invariavelmente batia com a mão enluvada e lhe atirava um beijo e um sorriso de alegria fazendo sinal para ter o café quente dentro de uns minutos, o bastante para ir até ao fim do jardim e abraçar o vento matinal sobre os rochedos. Por sua vez Armando deliciava-se em fotografa-la nesses momentos e lançava-se atrás dela apanhando-a desprevenida captando cada expressão especial e única do rosto e corpo amados. Assim os instantes de Helena foram ficando, impregnando as paredes, as roupas, os móveis, as vidas, e na fatídica manhã em que o poderoso Labrador veio uivando acordar a casa para o desgosto e para o luto a máquina fotográfica repousava sobre a banqueta do quarto onde sempre estava à mão para rapidamente ser agarrada e sair atrás daquele pedaço de vento, ou lágrima de nevoeiro. Helena desaparecera no fundo da ravina, e o seu corpo fora recuperado por um Armando morto por dentro, completamente despedaçado e mutilado. Desde esse dia a casa morrera, as salas foram ficando encerradas aos poucos, o pó foi-se acumulando nos móveis, os criados acabaram por ir também aos poucos embora, só o velho e fiel Alberto ficara a servir o seu amo, como sempre fizera, mas também ele mudou, a beleza e presença de Helena trouxera um ambiente novo e estranho aquela mansão, agora só o peso do silencio, o arrastar das horas e dias, e a profunda magoa de Armando restavam.
Havia algum tempo que recomeçara a tocar o piano, mas as lembranças eram dolorosas. A mulher tinha por habito vir aninhar-se no cadeirão perto da lareira, enroscada como um cordeirinho pequeno, descalça e de olhos perdidos nas brasas ou no rosto atento do marido, silenciosa e deliciada ouvia-o tocar e perdia-se nos acordes dos “Nocturnos” que ele magistralmente executava. No final levantava-se e de manso abraçava-o pelas costas e murmurava ao seu ouvido; - “Lindo meu amor, toca, toca só para mim. Toca amor, adoro ouvir-te!” ....
(O conto é grande para não ser tudo de uma só vez...Vai em várias partes)
Um local tranquilo onde os raios de lua, feitos palavras, lançam feitiços e enxugam lágrimas
sábado, outubro 27, 2007
NOTAS SOLTAS
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4 comentários:
As tuas palavras soam a uma linda melodia.
Beijo-te suavemente
OLÁ Querida, lindo.
Continua.
Beijinhos,
Fernandinha
Olá!
É sem duvida uma linda historia de amor, com muita expressao nas palavras e nos olhares de ternura que se viviam nessa relaçao tao feliz!
Um beijo e desejo de boa semana!
Olá de novo!
Passei para te dizer que tenho um miminho nas minhas "Vivências", para todos aqueles que de certa forma me ajudam a alegrar os dias menos bons!!!
Um beijo e um desejo de um optimo fim de semana!
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