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A seus pés a cabeça negra e peluda do castro Laboreiro, emprestava ao quadro a poesia de uma pintura romântica, não fora o rito que nos lábios carnudos se desenhava, uma dor imensa marcava com duros traços o rosto, a boca, os olhos daquela alma que à musica assim se entregava como quem se dá ao amante apaixonado e sedento de amor. Que pensamentos corriam naquela cabeça, perfeito perfil de deusa? Que negras dores assolavam aquele coração que sobre as teclas aos pouco morria? Das suas mãos finas e brancas, de unhas quase infantilmente nacaradas, desprendiam-se os segredos e os sofrimentos dos “Nocturnos” que em catadupa enchiam o ar, as paredes, as divisões e se elevavam em todo o seu esplendor no frio da noite, para morrerem na parede calcaria que os acolhia e desfazia em ecos mil.
A noite foi-se adensando, as horas passando, e os dedos parecia já terem vida própria, dançavam, rodopiavam, volteavam, iam e vinham em escaladas loucas, arrancavam à madeira nobre toda a alma, todo o amor, toda a dor, e o piano vibrava, contorcia-se, ganhava vida, à medida que a rapariga a ele se entregava num frenesim alucinado de uma alma em chaga. Agora já não era a mulher e o piano, eram um só, como dois ébrios apaixonados, que nada detêm, nada segura. Apenas vivem de e por amor, apenas se entregam aos braços do outro para darem e sugarem a vida.
O mar rugia já no estreito canal e as ondas não eram mais beijos meigos no cascalho da Prainha, eram duras cascatas de espuma que se elevavam no vento de tempestade. Lá no alto, crescia igualmente de tom o martelado do piano, como que a acompanhar a revolta da natureza, como que a querer medir forças com ela. A trança dera lugar ao cabelo solto e revolto pelas rajadas que as janelas deixavam entrar, o rosto era agora uma máscara dura onde o ódio e a dor se misturavam dando-lhe um ar alucinado e louco. Os olhos cor de mel tinham os laivos da demência, e o corpo eram uma tábua hirta de nervos tensos e indomados. Os dedos quase feriam sem piedade as teclas, que sob o seu impulso cediam e gemiam, gritavam e se agitavam fazendo em som belíssimo o grito mudo que aquela garganta não soltava.
Do meio da noite e dos seus segredos um trovão eleva a sua voz, e o raio risca o breu do aveludado manto. Ao rebentar a trovoada sobre aquela casinha de madeira rebentam também em pranto incontido os olhos que há muito calavam as lágrimas, rebenta o coração que há muito trancava a solidão e o medo, a dor e a angustia. E do peito eleva-se um grito angustiado e dorido que se fundiu no som dos trovões e nas águas acoitadas pelo vento. O corpo descai sobre o piano, a cabeça pende sem vida sobre as mãos que se abandonam sem forças, e os soluços feridos e duros vão repercutir-se nas esquálidas penedias calcárias.
Calou-se o mar, e o trovão foi abafado, apenas o gemido e o soluçar magoado povoam agora a noite, já que o piano se calou também acompanhando mudo aquela dor.
2 comentários:
Sem asas o pássaro fica preso
À terra prenhe e fria, a nostalgia
Sonhas com anjos negros no azul
Voando ao fim do dia
Profético beijo
Simplesmente fabulosa essa união. A musica de mãos dadas com um ser que une num momento único.
Belo de ler e sentir
Beijo profundo
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