segunda-feira, abril 09, 2007

OLHOS DE AVELÃ (CONT)

Caros amigos ao fim de uma ausencia prolongada, forçada, mas necessária, entre a doença e o trabalho regresso ao vosso convivio. Aceitei o desafio do nosso Vlad e aqui vai o resto dos "olhos de avelã" espero que gostem... Beijo muito grande para todos/as. É bom estar de volta

Mas o abrir a porta significava abrir o coração, espaço na sua vida e disso Matilde não tinha a certeza. João fora e era o seu mundo, fora o tudo e agora era o vazio, a ausência crua e dura. O seu lado de mulher, a sua carência, o seu físico pediam-lhe complacência, mimo, amor, troca, mas a alma rebentava de dor, o coração estoirava-lhe de mágoa, de saudade, de solidão. O racionalismo implorava-lhe “abre” a alma gritava-lhe “NÂO”! A rapariga debatia-se de telemóvel desligado na mão, olhos colados na porta, e olhos em fogo. Goldy roçava-lhe as pernas nuas e morenas, respirando com força como a lembrar-lhe que a vida estava por viver, e os segundos passavam-se profundos e apenas cortados pelo crepitar da lenha que não morrera na lareira.
Lentamente, arrastando os pés descalços, encaminha-se para a porta e muito lentamente, muito a medo abre o trinco, sabendo que as palavras que ouvira eram a realidade, Henrique estaria dentro do carro à espera que ela abrisse, por isso não se surpreendeu, quando a porta foi aberta devagarinho e muito mansamente pela mão grande e esguia, muito morena do sol e com a profunda cicatriz que a cruzava quase de um lado ao outro. Marca de um mau encontro num mergulho anos atrás.
Na penumbra da sala foi-se desenhando a elegante figura de um metro e quase noventa de Henrique. A porta fechou-se sem ruído e Matilde foi-se encolhendo e chegando para trás, a presença do homem na sala que fora deles dois era a um tempo incómoda e desejada, mas a rapariga mais do que nunca preferia não ter cedido ao racional, porque os gritos lancinantes da alma e o choro convulsivo do coração estavam prestes a fazer estragos. De braços cruzados sobre o peito, cabeça semi descaída, fazia esforços inauditos para conter a avalanche de lágrimas que ameaçava inundar-lhe os belíssimos olhos que tantos sorrisos e piropos geravam. Convidou Henrique a sentar-se, mas manteve-se cuidadosamente afastada dos braços que pareciam querer crescer para ela, envolve-la, estreita-la, e prende-la ao peito que subia e descia calmamente.
Ele observava o medo, a angustia, a dor imensa que aqueles olhos estranhos e cativantes jamais conseguiram mascarar, embora um breve sorriso houvesse começado a aflorar aos lábios carnudos havia algumas semanas. Fala-lhe baixo e calmamente de banalidades, depois vai levando a conversa para o trabalho, ele precisa de Matilde no fundo, dos seus conhecimentos arqueológicos e da sua mão excelente para o desenho, a fotografia vai ser assegurada por ele próprio que de momento não pode dispor de mais fundos e pagar a mais ninguém. Os olhos da rapariga vão criando aquele brilho fulvo que o encanta e desnorteia, o corpo relaxa aos poucos e os braços vão tomando vida, descai ligeiramente pelo sofá, e a voz solta-se um pouco mais. Henrique nem se atreve quase a respirar com medo de quebrar o encanto do quadro que tem de novo à sua frente; Uma Matilde contida e magoada sim, mas mais solta e empenhada, mais entregue, e de novo com um entusiasmo que já não lhe via há muito, por isso mantém a conversa e o desenrolar dos seus projectos.
Mas é homem, sedento, contendo há muito um sentimento que o roí e desnorteia. O coração explode em brados de amor que a muito custo cala e guarda. Matilde, levanta-se para preparar um café forte como gosta, com uma pitada de chocolate, perguntado ao seu interlocutor se também quer uma chávena. Henrique responde afirmativamente e segue-a com os olhos nosso movimentos esguios e bem lançados do corpo. Levanta-se e vai de manso até à porta da cozinha onde se encosta para a observar, com um sorriso breve nos lábios. Ela vai preparando as canecas, mas as mãos tremem-lhe ao relembrar os mesmo gestos feitos vezes sem conta mas com outra voz a falar nas suas costas. Semicerra os olhos por segundos, e quase pode sentir o corpo quente e viril que ao seu se encosta, os braços fortes de João que a prendem daquela forma tão especial, o murmúrio junto ao seu ouvido e as cócegas que lhe arrancam uma gargalhada cristalina e um encolher do pescoço arrepiado de prazer. Assustada abre os olhos, para a realidade do corpo másculo de Henrique que ao seu se veio prender devagar, muito a medo, os braços morenos que por trás a enlaçam prendendo-lhe os movimentos, e o beijo doce que no pescoço nu lhe depositou. Da sua garganta angustiada sobe um grito de horror que se queda mudo, o seu corpo perde a força e abandona-se no abraço forte que a sustenta, e dos seus eternos olhos de avelã correm rios de lágrimas mornas e doridas que Henrique com calma e ternura enxuga com beijos, aos poucos vai voltando o corpo quase inerte da rapariga para si, e acalmará no seu peito amplo os soluços que rompem o silencio da noite que os envolveu entretanto. Matilde é apenas e só uma menina perdida, oscilando entra a dor da perda e o calor da presença. Henrique arrasta-a para a sala onde a senta e aninha no colo, falando baixo de modo ela acaba por adormecer-lhe nos braços no meio dos soluços que aos poucos foram, acalmando. Deposita-a na cama tapando-a com a coberta de linho e vai ele próprio descansar no sofá, pensando naquela noite e em como não a deixará jamais só naquele espaço quente e meigo.
Amanheceu.
Matilde acorda cedo como sempre e à sua memória vem a noite anterior, levanta-se e recebe os bons dias de Goldy que age de maneira estranha quase que a puxando para a sala, seguindo o animal, vai dar com um Henrique descontraído e adormecido sobre o sofá. Sem saber o que sente, o que quer, o que vai fazer, senta-se no chão de pernas cruzadas observando o homem que na noite anterior a fizera de novo sentir gente, o calor do corpo, o beijo atrevido no pescoço, os braços que a acalmaram….E é João que clama do tumulo, Matilde não consegue reagir, raciocinar, debate-se numa agonia imensa e louca, tudo em si grita, avança, excepto a alma que lhe martela a cabeça, não!
È assim, com um ar de pânico e dor que Henrique a encontra baloiçando-se de olhos fechados, sentada perto da mesa baixa. Desnorteado com o ar alucinado da rapariga, ajoelha-se ao seu lado e abraça-a fortemente tentando que saia do transe louco em que a vê, e apenas consegue um grito rouco do fundo da sua alma; NÂO!
O trabalho recomeça, os mergulhos, os desenhos, as fotografias, a vida aos poucos vai continuando e dando novo alento aquela alma perdida e magoada, mas a cada avanço dele, Matilde recua um passo mais, o seu mais intimo eu pede-lhe que se mantenha intocada, mas a persistência e o amor de Henrique não a deixam só um instante, o carinho, a ternura, a atenção, vão abrindo caminho pelo meio do desalento e da dor. Já recebe o abraço com que é mimada sem fugir nem se encolher, caminha pela praia no final dos mergulhos, ou ao por do sol de mão dada e nos seu encantadores olhos um brilho novo, uma nova centelha vai despontando. No final desse verão, já ele é vista diária da casinha da praia arrastando até ao limite a sua permanência, mas nunca ficando, até que numa noite que o Outono já avançado tornou fria e chuvosa, Matilde lhe diz se não quer ficar à lareira em vez de ir a conduzir não sei quantos quilómetros. Henrique exulta e aceita o convite, será uma mulher ardente que prenderá nos braços enquanto o lume crepita, e Goldy se aninha perto dele. Será o prémio pela paciência, compreensão e ternura de um ano de espera e companheirismo.
Matilde é de novo MULHER.

2 comentários:

Juℓi Ribeiro disse...

Luar:

Belíssimo conto!
Escrito numa linguagem
apaixonante e sedutora!
Já na primeira linha
dissestes tudo:
"Mas o abrir a porta
significava abrir o coração"

E a porta do coração
só pode ser aberta
pelo lado de dentro.
Parabéns querida amiga!
Que bom que regressastes.
Venha sempre que puderes
me visitar.
A casa é sua...
Um abraço carinhoso.*Juli*

JM disse...

Valeu a pena esperar ;)
Muito bom!
Bjnhs

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