quarta-feira, abril 25, 2007

UM MOMENTO DE ETERNIDADE

Como pode cada segundo saber ao infinito?
Cada toque, cada festa, cada beijo,
trocados na pressa do desejo
no fogo de cada hora do destino.
Como pode cada momento ser eterno?
Cada carícia uma onda de paixão
incontida, louca, arrastada em turbilhão,
num escasso segundo do teu abraço terno.
Como pode, amor mais doce, crescer o tempo,
se cada momento contigo é uma aragem?
Uma brisa leve de passagem
na voragem desta vida em contratempo
que a nada se atém, nada a segura.
Oh vida estúpida e tão dura
que impões amarras de escravidão
a dois corações que se completam!
A dois seres que ao outro se dão
e na incongruência desta vida se despertam.

domingo, abril 22, 2007

SEM LUZ

Como se caminha pela noite sem lua
pelo trilho pedregoso sem luz, sem esperança?
Como se encontra a bonança
se a tempestade nua e crua
me assola sem piedade!
Como posso refazer os meus passos,
enfrentar de novo o dia
se o sol perdeu a magia
e a noite me prendeu em seus laços
de negrume sem idade?
Ah, noite de solidão
mais tenebrosa que a própria morte,
devora-me de tal sorte
que nem mesmo o perdão
se lembre jamais de mim!
Engole-me, traga-me a alma
esquece-te o que fui um dia,
envolve-me nessa calma
tão tua, tão negra, tão fria
e deixa-me partir por fim.

sábado, abril 21, 2007

PARTIDA


Disse-te adeus sem dizer,

calada, desfeita, sem alma.

Tecendo frases para converter

esta dor em pura calma.

Disse-te adeus por amor,

caminhei para o outro lado,

esqueci todo o calor

de todo o nosso amor trocado.

Disse-te adeus e morri,

chorei, perdi-me e desisti,

não me virei no caminho,

guardei as memórias no escaninho

da ausencia que perdura,

da dor que não abranda,

da violencia desta loucura

que me assola, puxa e manda

só para um poço sem fundo,

só mesmo para o fim do mundo

sexta-feira, abril 20, 2007

ESTRELA CADENTE


Se uma estrela caísse do céu,
descesse à terra
e acabasse com a guerra?
E a envolvesse no seu véu
de luz de estrela cadente?
Se uma estrela singela
brilhando agora na noite,
fosse o berço que acoite
a poesia mais bela,
a história mais pungente?
Se a sua luz faiscante
cortasse os céus de rompante,
perturbasse os sonhos meus
e pudesse mudar o rumo,
deste esgarçado fio-de-prumo,
que são os passos teus
correndo para o infinito?!
Que caíssem todas elas!
Fossem berço e tumba fria
fossem alma em agonia,
barcos perdidos sem velas,
fábulas, contos e mito.
Se uma estrela caísse do céu
para nos amortalhar no seu véu…

segunda-feira, abril 16, 2007

FRANCISCO












Cisco, abreviatura de Francisco, é uma criança como tantas outras, brinca, corre, salta, vai à escola, estuda, chora e ri, cai, esfola os joelhos e parte a cabeça, rasga as calças e dá cabo dos sapatos a jogar à bola. Tem uns agradáveis 8 anos e uns deliciosos e profundos olhos castanhos que falam por si, mesmo quando o rosto tem aqueles momentos inexpressivos. Bem, é uma criança “quase” igual a tantas outras. Francisco teve um parto longo e algo complicado que lhe deixou como sequelas um ligeiro atraso e dificuldades cognitivas, que só mais tarde se iriam detectar. Fora um bébé de fácil sorriso e sempre bem disposto, apenas levara mais tempo a pôr-se em pé, a ensaiar o palrar, a comer sozinho, a construir frases, a deixar as fraldas de entre outras pequenas coisas que foram despertando a atenção com o passar do tempo. Mas, ao entrar na escola a diferença notou-se mais, agravou-se, e enquanto os seus coleguinhas iam associando as formas, as cores, iam aprendendo os nomes dos objectos, Cisco ia ganhando habilidade de mãos, apuro de ouvido e um afastamento pronunciado do convívio natural entre crianças. Iam dar com ele, muitas vezes, sentado com a sua flauta, a ensaiar musicas que ninguém conhecia, nem tão pouco tinham sido ensinadas na aula de música. Em grandes ânsias andaram os pais, que correram com ele médicos sem conto, ouviram diagnósticos horrendos e tentaram inúmeras terapias, mas Cisco seguia no seu mundo semi isolado, mas feliz. Claro que se juntava ao grupo infantil e brincava, jogava e ria, trabalhava com os outros nas aulas e era sossegado e atento dentro do possível, mas a sua cabeça fugia para um mundo de sons e notas que pareciam brotar-lhe mais da alma que do cérebro.
A sua psicóloga percebera que não era fácil faze-lo falar, era uma criança calada, mas esperta, e se não o deixassem seguir o impulso nato da musica dificilmente Francisco seria alguém na vida. Decorreram os primeiros anos de escola e aos poucos e com bastante apoio e esforço Cisco conseguiu recuperar parte do seu atraso. Já lia correctamente e escrevia quase sem erros, a matemática era um pouco mais difícil, mas também lá seguia o seu curso normal, embora com umas notas mais baixas, mas sem chumbar contudo.
Como era um rapazinho especial necessitava de muita gente à sua volta para o auxiliar, as explicadoras, os psicólogos, a psiquiatra, a terapeuta da fala, enfim um batalhão de gente que o adorava e por ele puxava e ao qual ele respondia com o seu manso caminhar de menino e sorriso fácil no rosto, mas o tempo para o que mais gostava não era muito; A sua bem amada flauta, a sua música que compunha sem qualquer tipo de ajuda, aula ou ensinamento. Era algo que nele fluía sem restrição, como que uma onda enorme e infinita que o inundava e transbordava em mil notas. Um belo dia particularmente cansativo em que já tivera 4 explicações, uma consulta de oftalmologia e as aulas, chegou a casa e sentou-se no sofá carrancudo e tristonho. A mãe chegara havia pouco tempo e corria de um lado para o outro porque ainda tinham a visita semanal à psicóloga que dentro de três quartos de hora os aguardava. Francisco ligou a televisão e colocou a cabecita meia de lado, como era seu hábito, mas o som quase não lhe chegava aos ouvidos, subiu o volume e quase de imediato apareceu a mão à porta da saleta a manda-lo reduzir a gritaria, era impossível os vizinhos do ultimo andar não ouvirem a televisão! Mas como podia isso ser se o som agora é que estava normal? Sem prestar muita atenção a mãe arranca-lhe o comando das mãos, baixa o som e desaparece de novo nos seus afazeres, não sem antes o ter mandado fazer os trabalhos para não perder tempo depois. Cisco para ali fica amuado, de comando na mão e flauta, a sua inseparável amiga ao lado. Pega nela lentamente e leva-a aos lábios carnudos de menino, e cria, cria, cria. Quanto mais se deixa navegar nos sons mais a sua alma se expande, cresce e entrega, de tal forma que nem dá pela presença da mãe de novo na sala a chama-lo do seu devaneio musical para a consulta a que não convém chegarem atrasados. Salta a criança do seu assento e de muito má vontade arruma o instrumento no seu estojo cuidadosamente.
Uma vez no consultório, Francisco parece mais alheado do que é normal, dá a ideia que não está ali e é essa sensação que vai passar à médica mal o vê entrar. Cumprimenta-o e ele responde como sempre com o seu sorriso aberto e meigo, mas mal iniciam a conversa ele cala-se com um ar perturbado e de lágrimas a aflorarem os olhos escuros. A médica inclina-se para ele e repete a questão; Que tem ele, porquê a tristeza que o seu rosto não consegue esconder, que se passa?
Francisco responde com um soluço forte e magoado. Quase não percebeu o que ela lhe disse, e pede para ela repetir. A médica temendo o pior ensaia uma frase simples quase em cima do rosto do pequeno e depois a mesma coisa mais longe, o resultado é inequívoco Cisco piorou da audição. Sempre tivera dificuldades auditivas e fora operado em bebé, porque os sons chegavam ao seu pequenino cérebro distorcidos e entrecortados, mas agora a perca auditiva era bem mais significativa….
A sala aplaude-o de pé, na primeira fila o rosto corado e sorridente da mulher dava-lhe a certeza que havia valido a pena e numa retrospectiva rápida, em fracções de segundo, voltava aquele dia no consultório em que soubera que a surdez seria a sua companheira para o resto da vida. Daí em diante tudo fora diferente, tivera uma ânsia imensa, incontrolada de aprender tudo, ouvir tudo, guardar na sua memória todos os sons, desde os mais belos aos mais horrorosos, dos mais doces aos mais traumatizantes, para um dia, quando os seus ouvidos cessassem as funções de vez a sua memória conseguisse reproduzir pelo som magnifico e único do seu talento na flauta, o mundo vivo que conhecera. Percorrera o mundo, aprendera a linguagem dos surdos-mudos, mas pouco uso fazia dela, porque lia correctamente os lábios e como aprendera a falar, escrever e ler, conseguia falar sem problemas. Aprendera a colocar a voz para não gritar, e jamais descurara essas aulas que o acompanhariam para todo o sempre, bem como a dicção. Durante mais de trinta anos sofrera e lutara para se manter no mundo dos sons e ao seu lado tinha, havia quinze, aquele sorriso delicioso que o brindava da primeira fila.
Nessa tarde antes do espectáculo soubera que a paternidade lhe tocara à porta e a música que da sua flauta se elevou foi um hino de louvor à vida, à perseverança e ao amor.

O CANTO DO CISNE



Branco, imaculadamente branco,
desliza o cisne, mudo e majestoso.
O seu navegar suave e franco,
o porte elegante e garboso
de quem do lago é senhor e rei.
Mas na sua alma, o silencio é lei,
no seu pescoço fino, emplumado
uma garganta se esconde calada,
e o tempo passa breve esfumado
pelo seu corpo de ave amordaçada.
Branco, de uma alvura imaculada,
desliza solene na água gelada.
Nesse derradeira hora em que a vida
se esvai e o sopro quente esmorece,
da sua garganta muda e dorida
um grito se eleva e então acontece;
O seu canto final lança ao ar!
Morre o cisne devagar,
morre como sempre viveu,
elegante, sóbrio, garboso,
e num silencio muito seu
tomba o pescoço majestoso.






sábado, abril 14, 2007

QUANDO


Quando o coração já não bate,

quando os olhos já não vêem,

quando as mãos já não se estendem,

quando o sino toca a rebate

e as almas já não crêem.

Quando as vidas em farrapos pendem,

morre uma vida devagar,

sozinha num canto qualquer:

Barco perdido sem saber navegar,

leme partido, seu eterno mister.

Quando o coração toca a rebate

e a vida, a tom cinza, se esbate,

e os olhos já não crêem

as almas cegas não vêem.

Quando as mãos mortas nos pendem

em murmurios distantes,

como negros buracos hiantes,

navega uma vida perdida,

sem leme, qual asa partida!

sexta-feira, abril 13, 2007

NEGRO VELUDO



O dia acabava lentamente, morria nas suas agonias de Inverno frio e chuvoso, triste, arrastado, escuro. Para ela era apenas mais uma dia de trabalho que findava, a semana estava quase passada mas fora pesada e dura. No emprego o ambiente era de tensão permanente, em casa era de um abandono total.
Nesse dia voltou para casa exausta e sem vontade para mais uma noite de três palavras, de preparar as roupas e as comidas e de se deitar sem um simples gesto de carinho, uma atenção ou um mimo por mais pequeno que fosse. Olhou o céu plúmbeo e desconsolada abriu o chapéu de chuva encaminhando-se para a saída, os seus passos ecoavam na calçada de uma forma estranha, e dir-se-ia que passeava enquanto todos os outros corriam apressados para se recolherem e regressarem rapidamente aos lares, onde pelos menos estariam abrigados daquela chuva fria e incomodativa que dos céus desabava sem dó nem piedade. A sua cabeça ia nem ela sabia bem onde, algures num local aprazível onde o vazio em que passava os dias, nada era mais do que triste recordação, e onde ao seu lado alguém a fazia sentir mulher, amada, desejada, querida, alguém. A chuva martelava no tecido verde-escuro do chapéu com mais intensidade mas nem isso a fazia estugar o passo. De repente sem ela saber bem de onde viera, apenas ouviu um ranger de pneus atrás de si, e depois um embater surdo e duro no seu corpo vergado para se equilibrar contra o vento agreste, daí para a frente foi a escuridão total…
Ouve os sons ao seu lado, sente o toque de umas mãos quentes que prendem as suas, está acordada e desperta, vira a cabeça para o lado do som, mas somente um negro azulado se lhe apresenta aos olhos. Estranho!...Que se passa? Porque ouve, sente, fala, cheira, mas…Não vê?
Aos poucos a sua estranheza vai dando lugar ao medo, ao pânico, e por fim ao desespero. Ao fazer a pergunta que lhe queima a garganta, mas que tem, ao mesmo tempo, um pavor imenso de fazer, irrompem as lágrimas doridas e os soluços sacodem o seu corpo martirizado pelo atropelamento grave que sofrera; - “Lamento, mas não conseguimos recuperar-lhe a visão. Está cega!”
Dos olhos pensados correm em fio lágrimas de dor e de pavor. Agita-se, remexe-se, revolta-se num desespero profundo, numa agonia que voz alguma consegue acalmar, que mão alguma consegue abrandar. Já nem ouve as recomendações médicas que a proíbem de chorar, nem os ralhos mansos dos que as rodeiam, nem sente as mãos amigas que a tocam e tentam segurar e sossegar. Apenas e só aquela frase lhe grita aos ouvidos impiedosa e dura: Estou cega, estou cega, estou CEGA!!!!!!!
Acabou a hora da visita, ficou de novo só consigo mesma, e a voz do medo fala-lhe de novo, insinuante, trágica, marcante e poderosa como só medo é capaz de fazer;
- Daqui para a frente serás a pobrezinha que sempre viu e deixou de ver, como vais adaptar-te à vida sem os olhos? Como é o trabalho em que o computador era a tua vida, a leitura, a escrita, as correcções de exercícios, as expressões dos miúdos que tão bem decifravas, como é a escola, as deslocações, como é o girar em casa, a condução…Como vais viver? Serás a “ceguinha” coitadinha, e terás que conviver com essa realidade até ao fim dos teus dias. Vais perder o norte, vais deixar de te orientar, vais precisar mais do que nunca que te levem, indiquem, te guiem – A sua vida estúpida e sem sentido parecia-lhe agora um mundo cheio e vibrante, um caleidoscópio de alegria e vivacidade, de luz e cor, que jamais voltaria a ver. Queria desesperadamente voltar ao anoitecer daquele fatídico dia, em que atravessara a passadeira dos peões e já a meio dela fora arrastada pelo condutor embriagado num voo de mais de 20m, para aterrar de cabeça no duro asfalto que a deixara com múltiplas fracturas nas pernas e nos braços, algumas costela partidas, um traumatismo craniano, mas acima de tudo a deixara no mundo da escuridão. Queria fazer andar para trás os ponteiros do relógio, os dias e as noites, queria a sua vida idiota e sem brilho de volta, queria as suas horas de dor e solidão, o cansaço dos pontos corrigidos até quase ao nascer de um novo dia, os litros de café bebido para se manter acordada, o desinteresse do marido, as correrias no supermercado para chegar a casa com tempo para tudo o que tinha à sua espera. Queria voltar a deliciar-se com um bom livro lido no calor dos lençóis em madrugadas de insónia, queira…Queria…Queria…
Mas o negro que a rodeia é mais forte que qualquer sonho, mais real que qualquer esperança ainda que remota, que em si teima em habitar. Sempre que roda a cabeça para onde lhe parece ter lógica estar uma janela, apenas o silencio negro, hiante, descontrolado, lhe responder, ainda sem permissão para se levantar do leito onde o gesso numa das pernas pesa arrobas e as ligaduras a envolvem como a uma múmia, sente a angustia crescente de não saber onde está, nem poder identificar o espaço, sente a ameaça do desconhecido, o pavor do escuro, como criança indefesa em quarto sem luz em noite de trovoada. Calada, encolhida no seu tormento cego, apenas sente o peso da realidade sem capacidade para enfrentar a vida sob este novo aspecto. De cada vez que se “esquece” e olha para algum lado na esperança vã de vislumbrar uma luz, uma cor, uma imagem ainda que distorcida, só aquele veludo macio e negro, aquela noite eterna se lhe apresenta, e as lágrimas que vai reprimir quando acompanhada, soltam-se como ribeiros selvagens e indomados dos seus olhos outrora belos e meigos, e que agora nada mais são que duas esferas esverdeadas sem centelha de vida ou vivacidade. Rodam desolados nas orbitas sem sentido nem graça, sem rumo nem esperança.
Passa pela fisioterapia por causa dos estragos nas pernas e nos braços, passa pela terapia por causa dos olhos, necessita de reaprender a viver, desta feita sem o bem precioso da visão, mas apenas e só passa. Nada a prende. De que lhe serve andar, mexer-se de novo bem se os olhos já não a levam a lado nenhum? De que lhe serve a mobilidade, a liberdade de movimentos se a beleza que a rodeia se perdeu para todo o sempre? A força interior que sempre a movera perdera-se diluíra-se na cegueira, agora era uma mulher sem vontade, sem animo ou coragem a que se ia adaptando à noite que a amarrava ao medo, aos passos hesitantes e tímidos, aos tropeções e quedas, à reaprendizagem que a muito custo seguia. Para quê? Porquê? Perguntas para as quais não encontrava resposta, apenas e só o pesadelo de quem sempre vira, de quem sempre soubera onde estava como se mexer em qualquer espaço, conhecido ou não, e agora ia de mãos na frente, temerosa, encolhida, sempre à espera do próximo tombo, do próximo tropeção. Em casa geria bem os seus próprios passos, claro! Conhecia bem o chão que pisava, mas…
Saindo do ninho que a acolhia e onde se sentia o menos infeliz que lhe era possível, era um tormento que quase não suportava, e invariavelmente acabava numa crise incontrolada e sentida de choro.
Passaram-se os meses, aprendeu Braille, e aos poucos a vida ia sendo um fardo um pouco mais leve, mas o seu coração estava tão negro como o veludo que os seus olhos viam. Recomeçou a trabalhar, iam busca-la e leva-la, rodeavam-na de carinho e atenção, ao mesmo tempo que a incitavam a viver, a sorrir a ser de novo a mulher alegre e bem disposta que sempre fora. Não era o fim do mundo, estava viva! Mas o seu sorriso agora pálido e amargurado perdera o brilho e a espontaneidade que sempre tivera. Envelhecera, o seu corpo elegante e bem trabalhado no ginásio a que não faltava, era agora um invólucro sem graça e sem gosto, encolhido sobre si mesmo, os passos incertos jamais ganhariam o garbo de outrora em que se orgulhava de forma como pisava o solo, com elegância e correcção. A seu lado o cão guia que fora treinado para a acompanhar era o único que parecia compreender o desespero e tristeza profunda em que aquela alma se afundava de dia para dia, acertava o passo pelo dela, latia e fazia-a sentir a sua presença quase humana. Nessas alturas as lágrimas saltavam-lhe dos olhos e enterrava o rosto molhado no pelo sedoso do animal que se sentava e gania baixinho acompanhando-a na sua dor. Afeiçoara-se ao bicho e muitas vezes saía para que o animal tivesse o seu tempo de “desenferrujar as patas” como lhe dizia baixinho, forçava-se ao passeio pelo jardim que ficava perto de sua casa e sentia que o seu companheiro apreciava e dava valor ao seu esforço e assim, aos poucos, foi descobrindo que os seus outros sentidos se desenvolviam para compensar a visão perdida, o olfacto e o tacto eram-lhe agora preciosos e imprescindíveis. Aos poucos a vida vinha até si de uma outra forma, com uma intensidade que até ali lhe era desconhecida, os seus dedos desdobravam-se e reconheciam mil texturas que antes quase não distinguia, e às suas narinas chegam fragrâncias subtis que não lhe eram outrora familiares, também o ouvido se tornara apurado e mais atento. A vida chegava até si e tocava-a de uma forma nova e desafiadora, era um recomeçar do nada.
Um ano passara e com o seu companheiro de quatro patas o seu sorriso de outrora e o passo mais confiante, ela vencera; Renascera.

quarta-feira, abril 11, 2007

AMAR, ASSIM...SO POR AMOR




Razões mil para te amar,

calamos a cada beijo

unidos num só desejo,

o nosso terno caminhar.

A ausencia prolongada

renovada em cada entrega,

longamente ansiada,

o puro prazer que carrega

somente o nosso amor.









Desenhar o tempo

intemporal e eterno.

Penetrar nesse teu templo,

pessoal, unico, terno.

Da curva doce doce e arrojada

nasce o erotismo puro,

brota a alma agrilhoada

de quem aprendeu no duro.

Tempo desenhado na vida,

pelas tuas mãos sublimado,

tempo que está de partida

mas que é sempre esperado,

qual ciclo zodiacal

rodando em eterna escala.




MAGIA NA NOITE


Na magia desta noite escura

em que o medo se tornou bravura,

em que as estrelas dançaram

e os amantes se amaram,

em que o teu corpo no meu

tomou posse e também se deu,

nesta noite, amor maior,

o mundo parou para nos ver,

nos ouvir, sentir e em redor

tudo se calou. Nos teus braços a tremer

o meu corpo de mulher se deitou,

e desnudado se te entregou.

Até a distante lua se escondeu,

o seu brilho esmaeçeu

ante um amor tão profundo;

O nosso, amor, este pequeno mundo

que a magia desta noite escura

leva às raias da loucura.


segunda-feira, abril 09, 2007

QUERO-TE


Quero-te como se quer ao calor,
ao sol, ao verão, à vida e ao amor.
Quero-te como a mais nada,
como uma partida e uma chegada,
como se fosse morrer amanhã
e nada mais restasse,
como se o mundo acabasse
numa invernia temporã.
Quero-te como se a noite jamais acabasse
e o dia jamais se levantasse,
o canto das aves morresse
e o ribeiro emudecesse.
Quero-te como te sei amar,
toscamente, incompletamente,
quero-te assim....Inteiramente

OLHOS DE AVELÃ (CONT)

Caros amigos ao fim de uma ausencia prolongada, forçada, mas necessária, entre a doença e o trabalho regresso ao vosso convivio. Aceitei o desafio do nosso Vlad e aqui vai o resto dos "olhos de avelã" espero que gostem... Beijo muito grande para todos/as. É bom estar de volta

Mas o abrir a porta significava abrir o coração, espaço na sua vida e disso Matilde não tinha a certeza. João fora e era o seu mundo, fora o tudo e agora era o vazio, a ausência crua e dura. O seu lado de mulher, a sua carência, o seu físico pediam-lhe complacência, mimo, amor, troca, mas a alma rebentava de dor, o coração estoirava-lhe de mágoa, de saudade, de solidão. O racionalismo implorava-lhe “abre” a alma gritava-lhe “NÂO”! A rapariga debatia-se de telemóvel desligado na mão, olhos colados na porta, e olhos em fogo. Goldy roçava-lhe as pernas nuas e morenas, respirando com força como a lembrar-lhe que a vida estava por viver, e os segundos passavam-se profundos e apenas cortados pelo crepitar da lenha que não morrera na lareira.
Lentamente, arrastando os pés descalços, encaminha-se para a porta e muito lentamente, muito a medo abre o trinco, sabendo que as palavras que ouvira eram a realidade, Henrique estaria dentro do carro à espera que ela abrisse, por isso não se surpreendeu, quando a porta foi aberta devagarinho e muito mansamente pela mão grande e esguia, muito morena do sol e com a profunda cicatriz que a cruzava quase de um lado ao outro. Marca de um mau encontro num mergulho anos atrás.
Na penumbra da sala foi-se desenhando a elegante figura de um metro e quase noventa de Henrique. A porta fechou-se sem ruído e Matilde foi-se encolhendo e chegando para trás, a presença do homem na sala que fora deles dois era a um tempo incómoda e desejada, mas a rapariga mais do que nunca preferia não ter cedido ao racional, porque os gritos lancinantes da alma e o choro convulsivo do coração estavam prestes a fazer estragos. De braços cruzados sobre o peito, cabeça semi descaída, fazia esforços inauditos para conter a avalanche de lágrimas que ameaçava inundar-lhe os belíssimos olhos que tantos sorrisos e piropos geravam. Convidou Henrique a sentar-se, mas manteve-se cuidadosamente afastada dos braços que pareciam querer crescer para ela, envolve-la, estreita-la, e prende-la ao peito que subia e descia calmamente.
Ele observava o medo, a angustia, a dor imensa que aqueles olhos estranhos e cativantes jamais conseguiram mascarar, embora um breve sorriso houvesse começado a aflorar aos lábios carnudos havia algumas semanas. Fala-lhe baixo e calmamente de banalidades, depois vai levando a conversa para o trabalho, ele precisa de Matilde no fundo, dos seus conhecimentos arqueológicos e da sua mão excelente para o desenho, a fotografia vai ser assegurada por ele próprio que de momento não pode dispor de mais fundos e pagar a mais ninguém. Os olhos da rapariga vão criando aquele brilho fulvo que o encanta e desnorteia, o corpo relaxa aos poucos e os braços vão tomando vida, descai ligeiramente pelo sofá, e a voz solta-se um pouco mais. Henrique nem se atreve quase a respirar com medo de quebrar o encanto do quadro que tem de novo à sua frente; Uma Matilde contida e magoada sim, mas mais solta e empenhada, mais entregue, e de novo com um entusiasmo que já não lhe via há muito, por isso mantém a conversa e o desenrolar dos seus projectos.
Mas é homem, sedento, contendo há muito um sentimento que o roí e desnorteia. O coração explode em brados de amor que a muito custo cala e guarda. Matilde, levanta-se para preparar um café forte como gosta, com uma pitada de chocolate, perguntado ao seu interlocutor se também quer uma chávena. Henrique responde afirmativamente e segue-a com os olhos nosso movimentos esguios e bem lançados do corpo. Levanta-se e vai de manso até à porta da cozinha onde se encosta para a observar, com um sorriso breve nos lábios. Ela vai preparando as canecas, mas as mãos tremem-lhe ao relembrar os mesmo gestos feitos vezes sem conta mas com outra voz a falar nas suas costas. Semicerra os olhos por segundos, e quase pode sentir o corpo quente e viril que ao seu se encosta, os braços fortes de João que a prendem daquela forma tão especial, o murmúrio junto ao seu ouvido e as cócegas que lhe arrancam uma gargalhada cristalina e um encolher do pescoço arrepiado de prazer. Assustada abre os olhos, para a realidade do corpo másculo de Henrique que ao seu se veio prender devagar, muito a medo, os braços morenos que por trás a enlaçam prendendo-lhe os movimentos, e o beijo doce que no pescoço nu lhe depositou. Da sua garganta angustiada sobe um grito de horror que se queda mudo, o seu corpo perde a força e abandona-se no abraço forte que a sustenta, e dos seus eternos olhos de avelã correm rios de lágrimas mornas e doridas que Henrique com calma e ternura enxuga com beijos, aos poucos vai voltando o corpo quase inerte da rapariga para si, e acalmará no seu peito amplo os soluços que rompem o silencio da noite que os envolveu entretanto. Matilde é apenas e só uma menina perdida, oscilando entra a dor da perda e o calor da presença. Henrique arrasta-a para a sala onde a senta e aninha no colo, falando baixo de modo ela acaba por adormecer-lhe nos braços no meio dos soluços que aos poucos foram, acalmando. Deposita-a na cama tapando-a com a coberta de linho e vai ele próprio descansar no sofá, pensando naquela noite e em como não a deixará jamais só naquele espaço quente e meigo.
Amanheceu.
Matilde acorda cedo como sempre e à sua memória vem a noite anterior, levanta-se e recebe os bons dias de Goldy que age de maneira estranha quase que a puxando para a sala, seguindo o animal, vai dar com um Henrique descontraído e adormecido sobre o sofá. Sem saber o que sente, o que quer, o que vai fazer, senta-se no chão de pernas cruzadas observando o homem que na noite anterior a fizera de novo sentir gente, o calor do corpo, o beijo atrevido no pescoço, os braços que a acalmaram….E é João que clama do tumulo, Matilde não consegue reagir, raciocinar, debate-se numa agonia imensa e louca, tudo em si grita, avança, excepto a alma que lhe martela a cabeça, não!
È assim, com um ar de pânico e dor que Henrique a encontra baloiçando-se de olhos fechados, sentada perto da mesa baixa. Desnorteado com o ar alucinado da rapariga, ajoelha-se ao seu lado e abraça-a fortemente tentando que saia do transe louco em que a vê, e apenas consegue um grito rouco do fundo da sua alma; NÂO!
O trabalho recomeça, os mergulhos, os desenhos, as fotografias, a vida aos poucos vai continuando e dando novo alento aquela alma perdida e magoada, mas a cada avanço dele, Matilde recua um passo mais, o seu mais intimo eu pede-lhe que se mantenha intocada, mas a persistência e o amor de Henrique não a deixam só um instante, o carinho, a ternura, a atenção, vão abrindo caminho pelo meio do desalento e da dor. Já recebe o abraço com que é mimada sem fugir nem se encolher, caminha pela praia no final dos mergulhos, ou ao por do sol de mão dada e nos seu encantadores olhos um brilho novo, uma nova centelha vai despontando. No final desse verão, já ele é vista diária da casinha da praia arrastando até ao limite a sua permanência, mas nunca ficando, até que numa noite que o Outono já avançado tornou fria e chuvosa, Matilde lhe diz se não quer ficar à lareira em vez de ir a conduzir não sei quantos quilómetros. Henrique exulta e aceita o convite, será uma mulher ardente que prenderá nos braços enquanto o lume crepita, e Goldy se aninha perto dele. Será o prémio pela paciência, compreensão e ternura de um ano de espera e companheirismo.
Matilde é de novo MULHER.

O TEMPO PERDIDO NÃO SE RECUPERA

As palavras lançadas não voltam atrás, o tempo perdido já não tem retorno e a vida esvai-se, no silêncio voraz. Fica o caminho, diluído, sem...