domingo, novembro 25, 2007

TORMENTOSO DIA

O nevoeiro descia rápido pela encosta vestida de tons de ocre salpicada aqui e ali pelos perenes verdes. Puxando o capuz do blusão sobre os cabelos curtos e encaracolados, correu o fecho até acima e continuou, em passos desordenados, a descida.
Bem constituída sem ser excessiva, de pernas altas e bem feitas, mãos esguias e flexíveis, ágil e de porte elegante, quem a vê passar olha duas vezes, é uma mulher que prende o olhar, seja pelos olhos de um castanho profundo e meigo, seja pela figura que tem o seu quê de imponente e marcante, não deixa, quem com ela se cruza, indiferente. Mas hoje vai sozinha, o rosto contraído e sombrio, a ruga na testa e os lábios franzidos, as mãos teimosamente metidas nas algibeiras, olhos no chão e pensamento não se sabe onde. A natureza que tanto ama, que tanto desfruta, está ali ao seu lado, sem que a veja, sem que a sinta como só ela consegue.
O coração vai em chaga, o pensamento vai em fogo, a alma vai desfeita e a vida sem sentido escoa-se nos passos que as botas de escalar pisam sem rumo. Subira a serra, a sua bem amada serra, feliz, estava uma manhã de sonho, um sol vermelho anunciava-se no horizonte, a mochila às costas e o casaco quente, as botas de serra como lhes chamava e um sorriso nos lábios e o dia prometia ser um sonho. A sua meta, o topo, de onde a vista abarca um espectáculo fabuloso e deixa quem se atreve à escalada, extasiado com o mundo aos pés. Lá bem no alto a umas boas três horas de caminhada aguardam-na os segredos e mistérios da resistente anta que por lá permanece desafiando o tempo, as intempéries, as mãos humanas pouco cuidadosas e menos conhecedoras, também a voz do vento agreste e fresco que sempre sopra, e aquele silencio interior que só ali consegue e a deixa em paz. Neste dia porém aguardavam-na bem tristes e devastadoras noticias.
A escalada tornara-se um pouco mais difícil devido ao vento que entretanto virara e se abatia duro sobre a encosta escarpada, mas, habituada ás viragens súbitas do tempo subia a pulso e pinos a falésia pelo lado que mais gostava e mais difícil se tornava, o que estava virado ao mar. Não se permitia um segundo de distracção e nem o grito agudo das aves nem o marulhar forte da rebentação lhe tiravam a concentração. Chegada à sua plataforma de repouso ao fim de uma hora e pouco de subida sentou-se a olhar o mar imenso e já encapelado que se arremessava bravio contra as rochas. Tirou o termo com chá quente e as bolachas de maçã que sempre levava, da mochila que pousara a seu lado no diminuto espaço. Aquela primeira paragem era-lhe tão cara como a “sua” anta lá bem no topo. A meia encosta os ninhos já eram bastantes e se se mantivesse sossegada e sem mexer muito aos poucos os casais voltavam para os lares para dar atenção às crias e ovos, por isso, se mantinha o mais imóvel que a sua natureza irrequieta permitia, e desfrutava de momentos únicos junto das avezitas recém emplumadas e dos ninhos com ovos que eram com todo o esmero aquecidos passado o primeiro susto provocado pela sua chegada.
O céu ia-se toldando aos poucos e as ondas iam subindo de tom no estertor da rebentação, o seu olhar apurado vislumbra no nevoeiro que se adensa sobre as águas uma sombra oscilante. Uma embarcação! Tão perto da costa?! Num local onde a navegação se faz bem mais ao largo…Estranho, teria perdido o rumo com o nevoeiro espesso? Estaria em apuros? O rosto da rapariga franze-se tentando ver mais além, mas os dedos frios e húmidos da névoa colam-se às pestanas e pálpebras não permitindo ir mais além do que uns escassos metros de visão e mesmo essa bastante deficitária. Resolve encurtar o repouso e voltar à ascensão, para poder ter uma panorâmica mais abrangente lá de cima, isto se o nevoeiro não se tornar no mar leitoso e impenetrável que é normal naquelas épocas. O vento já sopra em rajadas secas e fortes que a fazem abanar como uma simples vara verde presa pela raiz frágil. As mãos enluvadas começam a não responder devido à pressa e perde dois grampos de fixação que a deixam furiosa, mas não menos disposta a alcançar o topo. De quando em vez olha para o mar tentando ver o vulto que sobe e desce ao ritmo das ondas cada vez maiores, sem saber muito bem porque o seu coração começa a apertar-se numa dor que não sabe explicar mas que a obriga a acelerar a escalada. Algo em si dispara em todos os sentidos. Uma dor imensa a inunda como se alguém muito querido estivesse a sofrer a seu lado sem que pudesse fazer fosse o que fosse. Uma ânsia sufocante abate-se sobre ela, tudo em si dispara sinais de alarme e perigo. Tentando raciocinar e não se deixar levar pelo sentimento desenfreado que a invade, firma-se nos pontos de apoio e nas cordas, nos seu grampos e nas suas mãos e pés conhecedores. Mas a sua mente acaba por sucumbir à descarga de adrenalina e deixa-se corroer pelo medo, pela ânsia e pelo desespero sem que saiba porquê nem de onde vem. Algo inexplicável a domina e a obriga a tentar subir o mais rápido que consegue, descura a segurança, perde o seu habitual sangue frio e domínio e só uma palavra lhe martela no cérebro; Chegar lá acima! Porquê? Não sabe. Para quê? Também não, apenas sabe que tem que chegar quanto antes.
Os pés já não buscam o trilho certo, as luvas já rasgou uma nas arestas da escarpa e a mão está cortada num golpe profundo que deixa rastos de sangue pelas rochas. Finalmente atinge o cume. Firma-se nos pés esgotados e olha de cenho franzido o mar. Um grito de pavor ecoa pelos rochedos abandonados e solitários; O barco vem desgovernado e desmastreado direito aos rochedos agudos. Os seus olhos abertos num pavor desmedido vislumbram uma figura solitária no tombadilho.
Conhece aquela capa de oleado, o chapéu da mesma cor que compraram juntos meses antes, conhece a figura masculina que de braços estendidos, como que querendo empurrar a penedia, se despede impotente da vida diante dos seus olhos. Um novo grito de pavor e horror trespassa o ar, as nuvens densas, o nevoeiro que se avoluma, nele vai o nome tantas vezes repetido numa dor sem fim. Imobilizada pelo terror, presa ao chão como se em pedra se tivesse subitamente tornado, assiste ao despedaçar do barco, ao soçobrar do casco e ao desaparecimento do único amor da sua vida. Um amor com o qual rompera havia uma semana, por uma briga estúpida e sem razão, e que precisamente hoje, pazes feitas pelo telefone e encontro combinado na “anta dos sonhos” como ele por graça dizia, voltaria a segurar nos braços e desaparecer no amplo peito que sempre a aninhava quando ele a abraçava.
Sem alento, morta com ele nas águas, sem entender o porquê, nem o que tinha acontecido, atordoada e sem rumo, cai de joelhos no solo. Incapaz de verter uma lágrima, o seu peito estoira de dor, a sua cabeça gira sem sentido. Só uma imagem lhe perpassa nos olhos, o barco despedaçado e o ruído pavoroso da madeira a rasgar nas rochas assassinas, e as águas negras que tragaram em segundos o corpo amado.

...Não sabe quanto tempo permaneceu no chão, esquece o equipamento e encaminhando os passos sem vida reinicia a descida pelo outro lado da serra….

5 comentários:

Whispers disse...

Ola linda!
Que historia linda.....cair de joelhos e saber levantar, erguer a cabeça para os céus, e jamais os olhos baixar a terra.
Minha querida,um dia me deixas-te um comentário que eu jamais esqueci que falava de mudar como se muda de vestido, de cor de cabelo ate e assim e a vida, teu comentário no tempo me fez pensar e pensei como e fácil falar agora fazer não e não, que tola que eu era, fácil mudar basta quer e tentar.
Não te quero triste seja la por o que for, sempre vi teus comentários uma forma de me fazer pensar, teu blog um dos que me faz dizer vale a pena a net ligar
Então vamos la um sorriso e não te sumas
Que a tua semana seja completa e maravilhosa
mil beijos
Rachel

Phantom of the Opera disse...

Não deixes que a revolta entre em ti.
Ela esconde a pureza dos sentimentos e não apaga tristezas, acaba por afastar quem realmente gostas.

Recorda-te dos momentos da vida em que sentes que as memórias não se apagam, elas permanecem na pele eternamente.

Beijo de quem gosta de ti

O Profeta disse...

Um história cheia de dramatismo e impressionante realismo...


Boa semana


Mágico beijo

Whispers disse...

Ola linda!
vim te deixar um grande beijo e perguntar se estas ok
beijos com carinho
Rachel

*Um Momento* disse...

Ai...
História linda mas... assim de ficar com lagriminha no olho

Gostei imenso de ler!

Beijo terno... em ti
(*)

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